Ao final da tarde, após horas de aulas, recebi um telefonema de uma senhora. Com uma voz muito delicada, própria da sua formação, perguntou se ainda se lembrava dela. - Claro que me recordo. Depois, explicou as razões por nunca mais ter aparecido, um acidente incapacitou-a durante longo período. Perguntei o que tinha acontecido. Ouvi atentamente e fiquei a saber alguns pormenores. Congratulei-me com a evolução favorável. Em seguida, explicou-me que queria ter uma pequena conversa comigo, e se poderia ser no dia seguinte. - Claro que pode. - Então, amanhã, irei falar com o senhor doutor. Mas já agora quero adiantar que vou levar o tal quadro. Aqui fiquei um pouco perplexo. São tantas as conversas, que começo a não conseguir recordar com detalhe parte delas. Deixei sair dois ou três sons de perplexidade e de admiração, querendo dizer que ainda me recordava da conversa tida há muito mais de um ano. Não foi apenas um gesto de cortesia, porque tive a sensação de termos falado sobre quadros, e não só. O meu problema era saber qual a temática do quadro. Não consegui atingir e desbravar esse ponto. Na sua forma educada de expor, adiantou: - O que é prometido é devido, senhor doutor. Fiquei a saber que iria receber um quadro. Mas a que propósito? Após as despedidas, recordei as inúmeras conversas que tivemos sobre a sua vida, violenta e sofredora, mais do que as doenças que sofre. Uma senhora de bons princípios, educação esmerada e vivências ricas, mas sofrida em termos familiares. Repudiada pelo único filho. Não tem mais ninguém, a não ser a ilusão de um dia poder recuperar o bem das suas entranhas. Senhora de respeitáveis bens, sofre há muitos anos com a situação familiar, mas ainda não perdeu a esperança de o poder ver. Sou depositário das suas confissões, histórias, tragédias, aflições e dores, algumas das quais me perturbam imenso. Continuo a não perceber as razões de querer que seja o fiel depositário de coisas tão íntimas e sofredoras.
Tal como combinámos, apareceu à hora marcada. Na mão direita trazia um saco, onde era visível um pequeno quadro. Começámos a falar. A descrição do acidente tomou a primazia durante longo tempo, até que chegou o momento de me entregar o quadro. Desconhecia o tema do mesmo, ou melhor, não conseguia lembrar-me, até que disse: - Aqui está o velho quadro, a gravura de que lhe falei em tempos, e que fazia parte da coleção do meu pai, que foi negociante de antiguidades, a "Paixão de Cristo". Nesse momento recordei o episódio. Em tempos, falámos sobre uma velha e estranha gravura onde estavam representadas todas as estações da Paixão de Cristo. Algo que nunca vi. Desembrulhei o quadro e fiquei surpreendido com a beleza da estampa francesa, "Madame Veuve de Turgis", provavelmente correspondente ao período de 1850, deliciosamente colorida, intitulada "Via Crucis". Comentei a delicadeza e a profundidade do tema e agradeci-lhe a gentileza. Trata-se de uma pessoa profundamente religiosa, que entendeu colocar nas minhas mãos uma peça que lhe diz muito em termos afetivos. - Como não sei onde é que iria acabar, decidi entregá-lo ao senhor doutor. Agora estou mais tranquila.
Agradeci. Alguém que vive uma verdadeira via-sacra ofereceu-me a "Via Crucis".
A conversa continuou durante algum tempo ao redor da sua "paixão".
Comentários
Enviar um comentário