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A mostrar mensagens de julho, 2013

"Passamento"...

Começa a ser muito frequente receber notícias de passamentos. É natural, penso, conheço muitas pessoas e já vivi alguns anos, logo, tenho que os registar, algumas vezes com naturalidade, outras com certo incómodo, por vezes com sentida tristeza e até mesmo com sentimento de perda. Começa a ser frequente receber notícias de passamentos. São tantos que às vezes chego a confundi-los com os meus pensamentos. São tantos que acabo por mergulhar em pensamentos construídos à custa das suas vidas e confissões. Quem diria que muitos dos meus pensamentos são frutos de vivências, do convívio, das confissões e do conhecimento de muitas histórias que a morte apaga num dia qualquer, indiferente a tudo e a todos. Desaparecem uns atrás de outros e eu acabo por ficar com algumas das suas recordações. Recordações que nunca partilharam com mais ninguém. Fui o único espetador de muitas representações singulares, em que a tristeza, a angústia, a amargura, o mistério, a volúpia, o ato reprovável aos olhos

"Triste país"...

Uma tarde livre é algo pouco habitual. Quis o acaso, e a época, que hoje tivesse possibilidade de fazer algo de diferente. Fui até à Figueira da Foz. É raro ir até aquelas bandas, que, noutras épocas, constituía um ponto de referência estival de máxima importância. O tempo passou e quando o tempo passa muda tudo, sobretudo os velhos hábitos. Ao chegar à cidade, a mente, liberta de preocupações, deixou-se inundar por inúmeras recordações que se sobrepunham de forma intemporal. O compasso de espera para uma brevíssima reunião permitiu verificar o apagamento de velhos pontos de referência. Triste ver esse apagamento. Dói. Mas também dói o vazio humano que se prolongava pelas ruas e até pela praia. Um vazio humano, um vazio de sentimentos e um vazio de esperanças. Dói ver a decadência a desfilar perante os olhares de quem se entretém, durante uma bela tarde, a analisar os passantes e o ambiente. Perguntei o que se passava, como se fosse muito complicado encontrar as explicações. Apenas q

"Sombra na escuridão"...

Há quem tenha medo da escuridão, mas há quem a procure para esconder as suas lágrimas. Há quem nasça na escuridão e há os que ao longo da vida são empurrados para esse estranho lugar. Viver na escuridão é triste, é viver em silêncio e sem calor. Até a morte precisa da escuridão para sobreviver na memória dos vivos. A escuridão só deixa de assustar quando permite desenhar as sombras da esperança. Ver sombras na escuridão é sinal de regresso à vida. A verdadeira escuridão é aquela que conhece o verdadeiro significado das sombras...

"Tarde"...

A tarde está cheia de vazios, sem sabores, sem cheiros, sem nada que me convença que valha a pena ver, sentir e desejar. Tarde sem interesse, mergulhada em angústia, desprovida de sentido e de vontade de viver. Ouve-se apenas barulhos, de serras, de alguns automóveis e pouco mais. Ruídos que atropelam o silêncio. Aguardo que o tempo passe. Apenas boceja. Olha para mim como se eu fosse o culpado. Pobre tempo que não tem mais nada do que fazer do que estar a aborrecer-me. Embirrou comigo, como se tivesse culpa de ter nascido numa tarde sem interesse. Tento explicar-lhe que estou farto de o sentir. Ri-se, goza comigo, e boceja mais uma vez, uma autêntica provocação sem sentido. Quero fugir-lhe, mas não me larga. Vigia-me como se fosse um carcereiro maldoso que goza com a angústia de um pobre prisioneiro. Viro-lhe as costas, finjo que não ouço os ruídos da rua e tapo os ouvidos com auriculares que debitam música suave ao acaso. E o tempo boceja, sempre a bocejar, como se tivesse necessid

"Lembrança"...

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Lembrar é viver, é degustar certos momentos da vida que deixaram as suas marcas, sem as quais não seríamos o que somos. Pequenas lembranças, mas suficientes para definir uma vida. Podemos deixar de entrar em contacto com a fonte que contribuiu para a nossa formação, a nossa vivência e quem sabe se para o nosso sucesso. Não interessa pesar essas lembranças, é suficiente dar-lhes a devida importância. Recordo o seu auxílio, as suas aulas personalizadas, a ida a casa e a doçura do trato. Soube ensinar com delicadeza para quem estava fragilizado. Aprendia facilmente sob o efeito de um doce sorriso e uma ternura maternal. Com o tempo, as melhoras do corpo e do espírito permitiam-me acompanhá-la a casa, como se a escuridão da época fosse algo de atormentador. Não era. Dava-lhe o braço e sentia que era um herói, alguém que passava de protegido a protetor. Gostava desta cumplicidade. A distância entre as nossas casas não era por aí além, umas quatro centenas de metros que se faziam facilment

"Religião e vacinação"...

Desde há muito tempo que certos movimentos se caracterizam por se oporem à vacinação das suas crianças. Os argumentos são vários, mas quase sempre de natureza ideológica e religiosa. São formas de contestação curiosas, uns dizem que é antinatural, que as crianças devem apanhar as doenças, que não devem ser sujeitas a "agressões" de origem humana, que as próprias vacinas são causa de doenças e há quem defenda a "ecologia normal". Há quase sempre uma atitude de rebeldia face à tentativa de criar uma ordem em que a saúde e o bem-estar sejam realidades palpáveis. Considero que dentro da esfera médica não há nada que consiga igualar-se ao poder e alcance das vacinas. Uma das principais conquistas da civilização que já permitiu erradicar uma doença, a varíola, e até poderia erradicar mais, como é o caso da poliomielite que ainda grassa em determinadas partes do Globo por incúria e desconfiança das autoridades religiosas islâmicas que veem neste processo uma forma de est

"Debaixo de uma árvore"...

Estar debaixo de um árvore é como sentir um regresso ao ventre materno. Acolhedor, confortável, respira-se o seu próprio ar, simples, puro, por vezes perfumado com diferentes fragrâncias. Vaidosas mostram o mistério e a beleza das suas folhas, flores e frutos. Permanecem silenciosas, mas cheias de vida, prenhes de esperança, mesmo quando a doença e a morte anunciada as corroem sem dó nem piedade. Não se queixam, mas sabem absorver as nossas queixas. Obrigam-nos a lembrar episódios do passado, porque gostam de ouvir histórias. Sente-se o vibrar das suas folhas e ramos na ausência de qualquer brisa. É a sua forma de rir. As que estão na vizinhança, invejosas ou duras de ouvido, inclinam-se para as poder ouvir e sentir e agitam-se com alegria brilhante fazendo com que as suas folhas dancem sob o sol que, estranhando tamanha alegria, quer saber o que se está a passar sob as suas copas. Fica no querer. Não ouve e não vê. Quantas histórias já devem ter ouvido e sentido. Quantas! Se eu soube

"Facciosismo"...

Sou um faccioso. Ensinaram-me que tinha de pertencer a um grupo, a uma religião, a uma corrente política, a um clube de futebol e que tinha de tomar partido por um ou por outro. Na escola os rapazes faziam pequenos grupos e se não pertencêssemos a um deles levámos "porrada" de todos. Assim sempre se evitava ser agredido porque havia quem viesse em socorro. Quando pertencia a um grupo ou fação ouvia vários tipos de argumentos, eram os melhores, os superiores, enquanto os outros não prestavam, eram maus ou perigosos. Se não pertencesse ao grupo que ia à igreja diziam que era obra do diabo e que ia para o inferno, um local horrível, onde o cheiro a carne queimada deveria ser intolerável. Ouvi, algumas vezes, naquele tempo, o padre a denegrir e a ofender um coleguinha por ser filho de um pastor protestante. Como não havia mais ninguém que pertencesse aquela religião o pobre do rapaz não entrava nos nossos jogos no adro, não assistia à catequese e praticamente não brincava. Anda

"Lua"...

Ainda não é tempo para ver a mais bela lua do ano, a de agosto. Falta pouco, mais um mês e vou vê-la em toda a sua plenitude, sentir os seus encantos e beber a sua sensualidade. Hoje estou a vê-la, quase esférica, rechonchuda, alegre, a brilhar e a querer ofuscar o fim do dia. Fá-lo de forma silenciosa, despertando interiormente lembranças de outras épocas num reviver constante e sempre novo. Passeei por velhas ruelas cujas formas, modificadas e modernas, não conseguem esconder as de outrora. Elas aparecem umas atrás de outras e cada uma delas desperta sorrisos, alegrias e até velhas lágrimas. Passo por uma estreita viela onde viveu um tio meu. Lembro-me de ver naquele espaço, pobre, decadente, lembranças pictóricas da minha avó. Quadros belos, muito belos que lhe couberam em sorte de partilhas. Tenho alguns, poucos, queria mais, mas não sei onde param. Ali estiveram outros. Desapareceram para as mãos de desconhecidos. Recordo-os. Gostava de os possuir. O seu comportamento, e forma

"O primeiro dia de escola"...

Jorge entrou para a escola primária em Outubro de 1957. Um dia radiante, cheio de sol. Nas vésperas andava ansioso com a expectativa da nova experiência. Os preparativos não foram nada de especial. Uma lousa e o respetivo lápis, um caderno sem linhas com umas capas transparentes e finas, com duas imagens, um casal de crianças, ela de tranças, ele de calções e ambos com um sacola a tiracolo a correr em direção à escola com a bandeira da mocidade no mastro. O que ele gostava mais era da mala. Uma mala de cartão prensado, grená, com uma estreita tira de coro para colocar no ombro. Orgulhoso da mala, deixaram-no no recreio com os outros meninos, uns tão novatos como ele, os restante eram verdadeiros veteranos, alguns muito crescidos para andar na escola, pensou. Descalços, a maioria, um ou outro com umas pobre sandálias ou tamancos e quase todos com sacas de pano, quase sempre de serapilheira, onde guardavam a lousa, invariavelmente partida, e um naco seco de boroa. Olhavam para o menino

"Navegar"...

O trabalho amolece o corpo e esgota o espírito. Se juntar o efeito do sol e o peso da idade, então, tudo combinado provoca uma sensação estranha de cansaço e de saturação que me obriga a fazer algo que contrarie tamanhos efeitos. Aproveitei a tarde para procurar um bálsamo ou uma mistela que me ajudasse a encontrar repouso e tranquilidade. Sempre que necessito desta terapêutica, e caso possa, mete-mo no carro e vou sem destino. Para a direita ou para a esquerda? Não percebi. Perguntou-me novamente, para a direita ou para a esquerda? Sem entender bem o alcance da pergunta, respondi, para a direita. Anda bem, porque ao fundo da rua houve um acidente. Avancei e de facto vi dois carros enfaixados num entroncamento. O habitual na minha rua. Continuei e fui por velhos caminhos conhecidos, rememorando as velhas paisagens que sempre se vão modificando pela ação do tempo e do homem. Andar sem  objetivo é uma forma de acalmar e domesticar o tempo e, também, uma tentativa simpática de rejuvene

"Candidato à loucura"...

Jorge Montagrão foi sempre um candidato à loucura, mas, por mais que quisesse e fizesse nunca conseguiu alcançar esse estatuto, antes pelo contrário, cada vez ficava mais lúcido e entristecido com a porra da vida. Entendia – quem sabe se não tinha algum fundamento? -, que a melhor forma de viver era na loucura, um verdadeiro paraíso em que não tinha que justificar a existência, saber de onde vinha e para onde ia, tudo porque desde muito cedo começou a desconfiar das patranhas que ouvia aqui e acolá. Os adultos não eram grandes merecedores de confiança. Uns aldrabões. Muitos eram especialistas em sacanices e trafulhices, se bem que alguns tudo fizessem para ser boas pessoas, compreensíveis e meigas. Quanto a estas sentia alguma afinidade e até desejo de protecção. Mas estes assuntos não são para abordar agora, talvez mais tarde, haja tempo e disposição. Sim, porque para falar de certas coisas não basta querer é preciso sentir e sem uma boa dose de loucura não é fácil. Pode ser que alg

"Beleza"...

Desde sempre que o homem procura a forma de perpetuar a beleza e atrasar o envelhecimento. Procurou e continua a procurar. Nesta ânsia de travar o processo de envelhecimento faz tudo o que pensa e o que nunca pensou. Presumo que não deve haver área onde a loucura atinge toda a plenitude. Poderia invocar fórmulas, dietas, rezas e muitas outras coisas sempre com o objetivo de travar a passagem do tempo. As células reconhecem como ninguém a sua finitude e acabam por sofrer as consequências. Mas o que interessa não é o que acontece às células e tecidos escondidos, o que pretendem é limpar o que ocorre à superfície da pele, escondendo a podridão ou a degradação mais profunda. Convencem-se de que se travarem o envelhecimento à superfície o problema está resolvido. No fundo traduz a primazia da superficialidade e das aparências, não muito diferente do que acontece com a vida social, académica, profissional e política. O que parece é! Claro que não é. Lembrei-me de escrevinhar este texto por

"Ferir"...

Não tenho muito tempo para escrevinhar um pouco. Vou tentar. Preciso cada vez mais de tempo, de tempo para ler, para pensar, para escrever e para amar. Sofro ânsias por não ter tempo e sofro por o ter quando mo roubam sem pedir. Hoje feriram-me. Entrou com um olhar pastoso, desconfiado, a combinar com a flacidez de um corpo na meia-idade, mal cuidado por dentro e também por fora. Tomei as minhas guardas, temi que pudesse ser ofendido. O olhar, uma expressão estranha, estranha em termos de fealdade intrínseca, incomodou-me. Sobranceiramente debitou, sem lhe ter pedido nada, o que tinha e o que não tinha, interpretando antecipadamente alguma crítica decorrente de qualquer anormalidade que pudesse detetar. Calei-me e refugiei-me nos meus pensamentos. Tenho de ser cauteloso, a nuvem é negra e quer transformar-se numa intensa borrasca. Comuniquei-lhe a alteração em questão que teve como resposta não fazer a medicação por ser dispendiosa. Deixei-a discorrer o tempo que quis, e propus-lhe qu

"Matar"...

Andam a matar. Matar tornou-se uma banalidade. A vida humana nunca teve grande valor, embora seja cantada como a mais bela expressão do universo. Um cantar ilusório que desaparece vezes sem conta às mãos de matadores, eles também humanos. Matar tornou-se uma realidade. Assusta ver, ouvir e saber que se mata de forma gratuita, premeditada e sem sentido. Matar é o sinal de uma humanidade mal gerada, mal parida e mal crescida. Matar é a força que puxa os seres humanos ao mais bárbaro primitivismo ou ao mais eloquente e superior degrau da evolução, viver, sobreviver sempre, matando, porque só se evolui à escala biológica se for capaz de matar. E mata, confundindo-se com a estranha animalidade que vive dentro de si, nas vísceras e no coração. Mentes vazias de almas que sucumbem a estranhos fenómenos. Matam. Matam por raiva, matam com ódio, matam por indiferença e até matam por prazer. Matar é próprio de quem não sabe ou não quer amar.

"Nudez"...

A exposição de um corpo desnudado pode provocar diversas opiniões, tudo depende da forma e da mensagem silenciosa que a acompanha. Olhar para um David estimula o centro da beleza e desencadeia reações capazes de produzir prazer, tranquilidade e alegria, o mesmo posso dizer do "Nascimento de Vénus"  de Boticelli, ou de muitas outras obras de arte em que o elogio do corpo humano é feito numa plenitude difícil de igualar. O belo, sempre o belo e até mesmo o não respeito pelas elegantes proporções físicas, resultantes da idade e da deformação, quer a de nascença ou a adquirida, pode provocar sensações difíceis de igualar, que só a nudez pode oferecer. A nudez quando apresentada sob estas formas contribui para o bem-estar e felicidade dos seres humanos. Não há que ter vergonha, nem deve ser objeto de comportamentos depreciativos. O mesmo não se pode dizer do aproveitamento e exploração do corpo humano para fins menos confessáveis, tais como certas formas de publicidade ou apelos

"Desconhecido"...

Nasceu desconhecido, nasceu um fruto de gente simples. Cresceu e aprendeu a viver, e a lutar, e a respeitar, porque só assim podia saborear o mundo. Compreendia e ajudava os outros, mesmo os que aparentemente não necessitavam de qualquer auxílio. Inteligente e apaixonado pela beleza sabia comunicar e amar, sabia como conquistar o mundo, não o mundo que lhe queriam mostrar mas um outro, belo e desconhecido, onde podia amar como se fosse mero respirar. Estaria ele a sonhar? Sonhar e amar acontece sempre a quem quer despertar num outro mundo, desconhecido para aqueles que não sabem e não querem sonhar e amar... Nasceu, viveu e morreu desconhecido. Nunca se importou. Tornou-se conhecido da beleza e do amor. Sabe que é conhecido por aqueles que apreciam a beleza e o amor. Desconhecido? Não. Não creio...

"Incompreensão"...

Gosto de contar histórias. Gosto de as ouvir e gosto de as registar. Muitas delas ensinam-nos a ver melhor o mundo e a compreender as pessoas, enquanto outras podem ensinar-nos a ser melhores, como se isso fosse verdade. Ninguém fica melhor depois de ouvir ou de ler uma história, pode sentir-se mais ou menos confortável, porque podemos despertar belos ou maus sentimentos ou criar novas sensações ou despertar velhos temores ou frustrações. Não mais do que isso. Há quem as saiba ler, mas há quem fique cego devido ao seu passado ou por ter tocado em algo que incomode. Quantas e quantas vezes contamos uma história não para ofender sentimentos, experiências ou vivências de alguém, mas apenas para ter um pretexto para descrever um episódio divertido e até hilariante, sem que isso signifique ser um insulto à condição de alguém? Longe disso. Mas há quem veja, e pior do que "ver" é a forma como julgam quem a conta ou a descreve, atribuindo-lhe características ou intenções que não co

"Voilá"...

Verão, época de férias. Eis que muitos emigrantes começam a regressar para descansar umas semanas. Mudaram muito desde os velhos tempos, quando vinham com as suas "voitures", novas e provocantes, a ponto de porem a salivar muitos dos que cá ficaram. Assustavam na condução. Sempre que via uma matrícula francesa tinha de redobrar a atenção para evitar problemas. E não era por uma mera questão de preconceito era por experiência própria e pelo que via. Também os ouvia. Aqui as coisas eram diferentes, não eram ofensivos em termos de integridade física, mas suficientemente agressivos em termos de comunicação quando misturavam o português com o prepotente francês. Falavam mal a nossa língua, o que não era novidade para ninguém, mas "compensavam" com o idioma de Voltaire e de Edith Piaff. Presunçosamente verbalizavam a torto e a direito frases e palavras francesas para poderem impor algum respeito e admiração aos demais. Enquanto as "voitures" denunciavam o seu p

"Chatos"...

Desde há algum tempo que me confronto com peitos de homens rapados. Habitualmente são novos, mas já vi alguns mais velhos. Nunca perguntei as razões, não tenho esse direito e não me serve para nada. O que eu sei é que começa a nascer uma nova cultura que é retirar os pelos do corpo. Vejo pela televisão e por algumas entrevistas que ter pelos no corpo, no peito e abdómen, caso dos homens, não é compatível com os fins a que se dedicam, habitualmente são manequins, atletas, atores, ou seja, de um modo habitual os que têm necessidade de mostrar a "peitaça". Alguns dos fervorosos adeptos da depilação argumentam que é melhor e mais higiénico. Mais higiénico? Onde é que foram buscar aquela ideia? Ter pelos é, para esse pessoal, sinal de algo "sujo" e inestético no contexto atual, mas ser higiénico isso não. Claro que há quem tenha pelos como se fossem "macacos". Talvez seja por isso que não queiram ser comparados com tão simpáticos animais. Há quem afirme que

"Sorte"...

Sorte, uma palavra enigmática, simples de pronunciar e rara de encontrar. Se fosse matemático  decerto encontraria modos de a exprimir através de complicadas equações. As constantes, os expoentes, as raízes quadradas, cúbicas ou que tais, as derivadas, das quais já não me lembro bem, e o uso de letras gregas, belas e cheias de sabedoria, conseguem seduzir qualquer ignorante provando que naquela complexidade equacional está a explicação científica deste fenómeno. Mas não sou, infelizmente. Se fosse poeta diria que a sorte era a benção de algum deus ocioso ou vicioso, que, apaixonado por alguma deliciosa mortal, se encarregaria de me utilizar para a possuir e amar através de belos e sedutores versos. Mas não sou, infelizmente, Se fosse religioso diria que era a vontade divina, que, ao escolher-me para usufruir a sorte, me tinha considerado como um eleito entre os eleitos. Mas não sou, infelizmente. Se fosse guerreiro seria um herói, porque a sorte protege os audazes, isso caso sobreviv

"Vermelho"...

A noite fria não incomodava. A sala estava iluminada pela luz do tempo, morna, amarela e muito fraca, mas era suficiente para apreciar a grande árvore, que tinha sido cortada no pinhal durante a manhã. Não era um pinheirito, mas um pinheiro espigado, já deveria ter entrado na idade do armário. Muito mais alto do que eu, obrigava-me a olhar para o alto, onde um pai Natal, bolachudo, se escarrapachava com uma alegria difícil de explicar. Pequenos e pobres ornamentos pendiam dos ramos ainda húmidos da noite e do mês. Não estava iluminado, apenas uns flocos de algodão que deveriam querer limpar algumas das feridas provocadas pelo transporte. Tinha-o visto a entrar de rastos sem um ai, sem sinal de que estava a sofrer. Não gostei que o tratassem daquela forma. Não merecia.  É hoje? É. Quando? À noite. E por onde vai entrar? Não sabemos. Talvez pela chaminé. É capaz. É tão larga que não vai ter dificuldade em descer. Posso ver? Podes. Ele não se importa? Não. Só que às vezes é tão rápido

"Morte"...

Fogem da morte. Escondem-se da morte. Negam a morte. A morte passou a ser coisa feia, má. Morre-se sozinho. Morre-se às escondidas, longe de tudo e de todos. A morte é a negação da imortalidade, o néctar que inebria os candidatos a deuses. Há quem não a veja e quem não a quer ver. Há quem nunca lhe tocou e não a quer sentir. Toquei-lhe muito cedo. Estava fresca num dia de verão. Não cantava e nem dançava. Não sorria, mas não estava triste. A pele fazia recordar a velha boneca de aspeto amarelado, cera suave que não se derretia. Vi qual era a sua cor, senti a sua frescura e admirei-me com o seu silêncio e tentei mergulhar num mundo que não era o meu, nem era o nosso. Lado a lado, cada um no seu mundo. Que coisa mais estranha. Não senti dor, não chorei, nem senti tristeza, apenas um vazio que ainda hoje perdura, sem saber porquê, talvez por ter acabado de aprender o que era viver, tocar e sentir a morte que estava ao meu lado.

"Um dia"...

Passo por velhos locais que envelhecem e rejuvenescem num equilíbrio sedutor. Olho e sinto o despertar de emoções, como se fossem quedas de água de saudades, eternamente frescas, cantando, rindo e brincando. Olho para os velhos recantos, sempre novos, e sinto o reviver de encantadores sentimentos. Sinto, subitamente, o acordar do vento, vestido de brisa, vaidoso e aparentemente indiferente à minha passagem. Parece que se lembra de mim. Sinto as suas carícias, doces e voluptuosas a tatear a minha face como se fosse um cego que vê tudo. Tem uma estranha forma de mostrar os seus sentimentos. Tem saudades. Premeia-me com odores discretos e inebriantes de alegria, de paz, de conforto e de esperança. Não sei como é que ele consegue fazer tão enigmática e agradável tisana. O sol pisca-me o olho, como quem diz, eu também ajudo e as árvores balanceiam-se dando a entender que também estão a contribuir. Sorriem, como só elas sabem, numa bela tarde em que o tempo para, para para descansar um pou

"Fogo"...

As cavacas despidas e desmembradas com a velha rasoira eram colocadas em pequenas pilhas em amena cavaqueira com as pinhas secas. Incumbiam-me de atear e alimentar o fogo. Gostava de o fazer, com cuidado e com admiração, sabedor de antemão dos frutos de conforto que iria sair daquele monte tão carinhosamente preparado. Ensinaram-me e aprendi. Via as belas labaredas a desenharem figuras e quadros que eu só sentia e compreendia. Ouvia o crepitar das madeiras e das pinhas cantando doces poemas e dançando loucos passos de bailado, até que o cansaço as transformava em brasas saudosas de um passado recente que nunca mais iria repetir-se. Olhavam-me vermelhas de cansaço. Já não conseguiam falar, mas, mesmo assim, ouvia-as numa inocência adivinhadora do seu fim. Em breve iriam transformar-se em cinzas, leves, suaves e cheias de encanto, encanto de liberdade e de paz. Foi assim que iniciei a minha aprendizagem com o fogo, encantador, sedutor, libertador e também destruidor. Aprendi e não esque

"Medo"...

Punham a telefonia a tocar baixinho. A telefonia tinha uma pequenina luz, ficava vermelha quando se ouviam ruídos de dor e verde quando tocava música suave. Os ruídos incomodavam, pareciam gritos de dor, agudos, como se estivessem a picar alguém. Picar, já sabia o que era. Provocava dor e gritos. A escuridão da noite assustava-me, não conseguia ver nada, e quando via ficava com medo. A lâmpada amarela da cozinha tinha o estranho hábito de dançar à noite fazendo com que surgissem das paredes monstros e gente má embrulhada em capotes prontos a fazerem-me mal. Fechava os olhos. Preferia que tivessem apagado a triste, silenciosa e descorada luz da cozinha. Olhava apenas para aquele pontinho verde, lindo, que brilhava e até piscava. A música que saia da caixa ajudava-me a não ver os vultos que andavam na cozinha à solta. Eu sabia que enquanto tocasse eles não entravam no quarto e não me levavam. Eu não queria. Tinha medo que a caixa se calasse. Quando os acordes musicais denunciavam que a

"Flores"...

Há muitos anos, numa manhã de domingo, brilhante e cheirosa, recordo um céu azul acabado de pintar. A atmosfera era tão transparente como se tivesse nascido naquele preciso momento. O silêncio matinal permitia que belas flores, frescas, se emocionassem, libertando pequenas lágrimas de água pura. Quem as bebesse decerto encontraria a felicidade, mas, envergonhadas, escondiam-nas de imediato. Uma flor não gosta que lhe toquem quando se emociona. É o seu estado de alma mais misterioso, é o seu segredo e todas prometeram não o revelar aos humanos, apenas a almas livres. Cantam e encantam, nascem e morrem, vivem e deixam viver, enfeitam e deixam-se enfeitar, dóceis, obedientes, alegres e embelezam o mundo. Servem para tranquilizar a ansiedade da vida, curar a tristeza dos que sofrem e para alimentar a esperança dos desesperados. O mundo sem flores não tinha qualquer sentido, seria um mundo sem vida, sem esperança e sem beleza. Olha-se para uma flor, toca-se numa flor, cheira-se uma flor,

"Mosquitos"...

Estamos na altura de viajar. As férias convidam a isso. No entanto, são precisas cautelas quando se viaja para certas partes do globo. É por isso que foram criadas as “consultas do viajante” para quem tem de se deslocar a zonas ditas “perigosas” em termos de saúde. Há, obviamente, algumas especificidades próprias que os médicos conhecem muito bem e, por isso mesmo, são capazes de as contornar mediante aconselhamento, cuidados próprios e vacinação. De todos os perigos, o mais preocupante tem a ver com os mosquitos. Os mosquitos constituem de todos os riscos o número um. Das milhares de espécies existentes apenas cerca de duzentas é que são importantes em termos médicos, já que a maioria, felizmente, não “picam” os humanos, preferem outras espécies como anfíbios e répteis. Além do mais não podemos esquecer que os mosquitos que nos picam são as fêmeas, o que está em consonância com a sua condição! E ainda dizem que os machos são agressivos. Os mosquitos podem transmitir muitas doe

"Na cabeça de um átomo"...

Se olharmos para o passado é fácil de concluir que a velocidade de informação era tão baixa que nalguns casos nem tinha qualquer hipótese de ser transmitida. Sociedades diferentes viviam no mesmo planeta sem saberem umas das outras, logo não podiam comunicar. Na altura o mundo era enorme, de uma vastidão difícil de compreender. Quando começámos a perceber que vivíamos no mesmo planeta a primeira preocupação foi comunicar, comunicação feita através dos negócios e, posteriormente, também, à custa da fé e da espada. As notícias quando chegavam faziam lembrar a luz das estrelas que vimos numa bela noite, elas estão à frente dos nossos olhos mas não são mais do que imagens de um passado, porque a realidade dos acontecimentos nesse momento é impossível de conhecer. Mesmo assim, o homem conseguiu reduzir o tamanho do mundo. Depois, a velocidade de comunicação e de informação aceleraram, mas, mesmo assim, continuávamos a assistir a acontecimentos que já tinham ocorrido desconhecendo perfeita

"Telefone"...

A ida ao Porto, num dia de feriado em Coimbra, deveu-se à necessidade de participar numa reunião de um conselho da Ordem dos Médicos. Para evitar cansar-me optei, naturalmente, ir de comboio, o que me apraz muito. A viagem demora apenas uma hora e dá tempo para algumas leituras e descanso. Foi o que pretendi fazer. Sentei-me. Ao meu lado direito uma senhora oriunda da capital dormia. Não a incomodei, apenas sugeri suavemente que tirasse a sua mala para poder sentar-me. Assim o fez e voltou a fechar os olhos. Eu comecei o meu ritual ferroviário. Ainda não tínhamos parado em Aveiro, quando o seu telemóvel se pôs aos soluços com um daqueles toques irritantes. Começou a falar como uma Isa, preocupada com o seu menino, perguntando se estava bem. - Está sonolento? Deve ser do Atarax, não se preocupe, coitado, é por causa das comichões. Sabe, o Atarax provoca sonolência - Ah. É verdade. As alpergatas estavam uma maravilha. Tão interessantes. Gostei muito. Olhe eu queria pedir para trocar uma

"Palavras difíceis"...

É preciso viver muito para entender o passado, e à medida que o tempo avança mais facilmente viajamos até a certos momentos em que as coisas eram tão naturais que nem nos apercebíamos da sua existência e importância. Tudo se processava a passo de caracol, os dias pareciam ser longos, as noites curtas, tamanha era a vontade de dormir, as brincadeiras rendiam e só se rendiam ao cansaço, algo difícil de atingir. À noite, depois do jantar, havia ainda tempo para ir até aos bombeiros ou à casa do povo para jogar ping-pong, ao bilhar, ao jogo da glória, ao dominó ou às damas. Era preciso pelo menos um adversário, o que não era problema, o mais complicado era arranjar mesa, fosse a do bilhar, a do ténis de mesa ou as ditas normais para os outros jogos. Mas se fosse um pouco mais cedo não tinha grande dificuldade.  Alguns de nós continuavam a estudar, outros, não, trabalhavam, mas havia um sentido de irmandade que a descriminação de acesso aos estudos nunca obstruiu, nem na altura nem aind