"Medo"...


Punham a telefonia a tocar baixinho. A telefonia tinha uma pequenina luz, ficava vermelha quando se ouviam ruídos de dor e verde quando tocava música suave. Os ruídos incomodavam, pareciam gritos de dor, agudos, como se estivessem a picar alguém. Picar, já sabia o que era. Provocava dor e gritos. A escuridão da noite assustava-me, não conseguia ver nada, e quando via ficava com medo. A lâmpada amarela da cozinha tinha o estranho hábito de dançar à noite fazendo com que surgissem das paredes monstros e gente má embrulhada em capotes prontos a fazerem-me mal. Fechava os olhos. Preferia que tivessem apagado a triste, silenciosa e descorada luz da cozinha. Olhava apenas para aquele pontinho verde, lindo, que brilhava e até piscava. A música que saia da caixa ajudava-me a não ver os vultos que andavam na cozinha à solta. Eu sabia que enquanto tocasse eles não entravam no quarto e não me levavam. Eu não queria. Tinha medo que a caixa se calasse. Quando os acordes musicais denunciavam que a música ia terminar ficava assustado. Será que agora não vai aparecer mais nenhuma? Mas aparecia, e a nova música tranquilizava-me novamente. Lá fora, os vultos silenciosos dos monstros, impacientes por entrar, ficavam cada vez mais raivosos. Tinham medo da música e daquele belo e brilhante foco verde. 
O meu medo nasceu de noite, na escuridão, ou na penumbra desenhada pela lâmpada amarela, triste e cansada da cozinha, que gostava de baloiçar e de abrir as portas a monstros e a outros seres que eu desconhecia e que aprendi serem capazes de fazer mal a uma criança. Aprendi e temi. Encolhia-me e deixava-me levar por aquelas bandas musicais cujos acordes suaves e misteriosos queriam proteger-me. Não sabia de onde vinham, só sabia que vinham para me ajudar e defender. A luzinha verde deveria ser o sinal para saberem onde estava. É aqui. Ele está aqui. Eu estou aqui, dizia. Eu estou aqui. Ouvia, ouvia até adormecer e ouvia enquanto dormia e sonhava. Continuei a ouvir. Continuo a ouvir. Afinal o medo é muito fácil de combater, basta uma simples telefonia, ouvir suaves acordes misteriosos e ver uma pequenina luz verde...

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