"O primeiro dia de escola"...

Jorge entrou para a escola primária em Outubro de 1957. Um dia radiante, cheio de sol. Nas vésperas andava ansioso com a expectativa da nova experiência. Os preparativos não foram nada de especial. Uma lousa e o respetivo lápis, um caderno sem linhas com umas capas transparentes e finas, com duas imagens, um casal de crianças, ela de tranças, ele de calções e ambos com um sacola a tiracolo a correr em direção à escola com a bandeira da mocidade no mastro. O que ele gostava mais era da mala. Uma mala de cartão prensado, grená, com uma estreita tira de coro para colocar no ombro. Orgulhoso da mala, deixaram-no no recreio com os outros meninos, uns tão novatos como ele, os restante eram verdadeiros veteranos, alguns muito crescidos para andar na escola, pensou. Descalços, a maioria, um ou outro com umas pobre sandálias ou tamancos e quase todos com sacas de pano, quase sempre de serapilheira, onde guardavam a lousa, invariavelmente partida, e um naco seco de boroa. Olhavam para o menino com alguma estranheza, devido aos sapatos ou à mala de abertura convexa. Jorge pensou: -... estão a olhar para a minha mala de papelão grená. Era o único que transportava um luxo ordinário que não devia resistir a duas chuvadas. Não foi difícil integrar-se nas primeiras brincadeiras, algumas corridinhas e um esboço de jogo de futebol com uma bola de trapos, artefacto que, mais tarde, se tornou numa criativa especialidade, graças às meias que ia surripiando lá em casa, e que lhe valeram razoáveis tareias a juntar a tantas outras que foi acumulando. Pancada era coisa que não faltava. Não foram para a sala. O professor, baixo, atarracado, com notória falta de cabelo e um sorriso aparvalhado, denunciava que não iria faltar porrada àquele gado!... Brinquem hoje, que nos próximos dias irão ver o que é a pedagogia do Estado Novo... Os restantes alunos não se apercebiam da espécie que ali estava, novo e treinado para domesticar os asnos da terra...Mas se os burros aprendem, aqueles gajos, malcheirosos, cheios de piolhos, esfarrapados, com tochas nos narizes e pés encardidos, acabarão, também, por aprender a escrever o nome, identificar as letras, juntá-las e cagá-las um dia, assim que lhe pusessem à frente uma folha escrita...Se tivessem dificuldade, bastaria recordar o efeito purgante dos seus berros, bofetadas, pontapés e palmatórias para desfazer qualquer nó que provocasse prisão de ventre nos seus cérebros. Os burros não davam conta do que estava ali! Ficou assustado. Mais tarde comprovou que o safado era mesmo o que temia. Afastou-se dele e recomeçou a correr. Foi quando a estreita tira de couro lhe saltou da mala. Parou. Baixou-se e ficou consternado ao ver que na junção da tira à mala o miserável pino, responsável pela fixação, tinha saltado. Procurou-o e tentou com os deditos e uma pedra pregar novamente a tira. No sítio inicial não podia porque tinha aparecido um buraco. Colocou-a debaixo do braço esquerdo e só com a ajuda da mão direita, é que conseguiu transportá-la até casa, com muita dificuldade e uma tristeza tão grande que ofuscou por completo a sua primeira manhã na escola. Correu mal! Estragou a mala e partiu a lousa virgem, logo depois de ler a mente do professor cujo sorriso e estranho olhar não adivinhava nada de bom. Já não se recorda se disse algum palavrão. Foi então que entoou bem alto e com uma satisfação recalcada de meio século: - Merda para a escola! E logo na primeira manhã!

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fugir

Nossa Senhora da Tosse

Coletânea II