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"Fogo"...

As cavacas despidas e desmembradas com a velha rasoira eram colocadas em pequenas pilhas em amena cavaqueira com as pinhas secas. Incumbiam-me de atear e alimentar o fogo. Gostava de o fazer, com cuidado e com admiração, sabedor de antemão dos frutos de conforto que iria sair daquele monte tão carinhosamente preparado. Ensinaram-me e aprendi. Via as belas labaredas a desenharem figuras e quadros que eu só sentia e compreendia. Ouvia o crepitar das madeiras e das pinhas cantando doces poemas e dançando loucos passos de bailado, até que o cansaço as transformava em brasas saudosas de um passado recente que nunca mais iria repetir-se. Olhavam-me vermelhas de cansaço. Já não conseguiam falar, mas, mesmo assim, ouvia-as numa inocência adivinhadora do seu fim. Em breve iriam transformar-se em cinzas, leves, suaves e cheias de encanto, encanto de liberdade e de paz. Foi assim que iniciei a minha aprendizagem com o fogo, encantador, sedutor, libertador e também destruidor. Aprendi e não esqueci. Vi vezes sem conta a sua beleza. Vi algumas vezes a sua capacidade de destruir e de matar. Nos dias quentes de verão obrigava o céu azul a enegrecer-se de maldade e, ao final da tarde, com um terrível e espetacular vermelho, revelava a sua paixão traída, mas também vi a doçura e o encanto das suas chamas tranquilas, e praticamente imóveis, oscilando ligeiramente para mostrar que estava vivo, quando iluminava de forma suave as faces de belas e sedutoras santas, desejosas de beber o seu calor e apreciar a leveza da sua cor. Vi chamas azuladas e frescas a ajudarem a aliviar o sofrimento de doentes. Vi e conheço muito das suas labaredas: domesticadas, selvagens, puras, caridosas, nutritivas, raivosas, suaves, doces, sedutoras, amorosas, fúteis, revoltadas, cheias de fé, testemunhas de saudades e purificadoras do corpo e da alma. Não conheço nada que se pareça com o fogo: o elemento que encerra em si a vida, a morte, a destruição, o prazer, o amor, a saudade, a fé e a pureza libertadora da vida e da morte.

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