"Lua"...



Ainda não é tempo para ver a mais bela lua do ano, a de agosto. Falta pouco, mais um mês e vou vê-la em toda a sua plenitude, sentir os seus encantos e beber a sua sensualidade. Hoje estou a vê-la, quase esférica, rechonchuda, alegre, a brilhar e a querer ofuscar o fim do dia. Fá-lo de forma silenciosa, despertando interiormente lembranças de outras épocas num reviver constante e sempre novo. Passeei por velhas ruelas cujas formas, modificadas e modernas, não conseguem esconder as de outrora. Elas aparecem umas atrás de outras e cada uma delas desperta sorrisos, alegrias e até velhas lágrimas. Passo por uma estreita viela onde viveu um tio meu. Lembro-me de ver naquele espaço, pobre, decadente, lembranças pictóricas da minha avó. Quadros belos, muito belos que lhe couberam em sorte de partilhas. Tenho alguns, poucos, queria mais, mas não sei onde param. Ali estiveram outros. Desapareceram para as mãos de desconhecidos. Recordo-os. Gostava de os possuir. O seu comportamento, e forma de ser, meio louco, despropositado, boémio, misturava-se com tiques aristocráticos e uma franca solidariedade facilmente explorada. Faço um esforço de imaginação e consigo vê-los. A lua é minha testemunha. Ela passava por este local na altura. Recordo bem. Não precisava de luz artificial para saber o caminho. Fiquei com pena quando olhei para aquele casebre. Sempre que passo por ali lembro-me dos quadros e da lua. Mais em baixo passei pela velha prisão. Hoje não tem grades. Na altura os prisioneiros eram ali encarcerados como se fosse uma gaiola. Falavam atrás das grades com os passantes e recebiam alimentos e tabaco. Estavam sempre numa amena cavaqueira. Quantas vezes os via e ouvia e algumas vezes até pediam para comprar cigarros na tasca em frente e e até que lhe trouxessem um copo de vinho. De lado era a prisão das mulheres, e, segundo vim a saber mais tarde, as grades nunca foram impedimento para que à luz da lua não fizessem coisas que eu ainda não compreendia muito bem. Até se consta que um familiar próximo conseguiu emprenhar uma prisioneira! Bom, coisas que fazem parte da memória coletiva. 
O meu tio, meio louco, meio aristocrático e de uma solidariedade inquestionável - a soma é mesmo maior do que as partes -, acabou, diria com esperada naturalidade, por malhar com os ossos naquela prisão. Lembrou-se de subtrair às tias velhas algumas joias. Para que é que elas precisavam de joias? Nunca saíam de casa, e apenas uma delas é que ia à missa. Para o castigar comunicaram o caso à justiça e ele acabou por ir parar àquela gaiola. Gostava imenso dele, muito mesmo, mais tarde, como médico, fiz o que pude e o que não podia para o ajudar. Acabei, numa noite de luar, de julho, por o transportar às costas, transformado em múmia, porque o enfermeiro de serviço do hospital, um cretino qualquer, não me disponibilizou uma maca para o levar para a capela. Revoltado, coloquei-o ao ombro e levei-o pela mata sob o olhar da lua. "Dormiu" na urna na capela, como tinha direito. Na altura, quando estava preso - a lua deveria ter o mesmo aspeto de hoje -, ia sorrateiramente até junto das grades e chamava-o com medo. Aparecia com as suas olheiras de sempre, agora mais profundas, mais tristes e com o cigarro, sempre aceso, preso nos dedos finos em forma de gancho. Eu chorava com pena e ele consolava-me dizendo, não fiques assim, eu saio em breve e depois vou comprar-te uma prenda bonita. Não chores, não fiques com pena, isto é apenas uma brincadeira e oferecia-me um sorriso sedutor. Falta muito? Não, daqui a alguns dias já estou aí fora. Vá, vai para casa, vai dormir descansado. Dá cá um beijo. E, através das grades, punha-me em bicos de pés para lhe dar um beijo. A lua é minha testemunha.

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