"Vermelho"...


A noite fria não incomodava. A sala estava iluminada pela luz do tempo, morna, amarela e muito fraca, mas era suficiente para apreciar a grande árvore, que tinha sido cortada no pinhal durante a manhã. Não era um pinheirito, mas um pinheiro espigado, já deveria ter entrado na idade do armário. Muito mais alto do que eu, obrigava-me a olhar para o alto, onde um pai Natal, bolachudo, se escarrapachava com uma alegria difícil de explicar. Pequenos e pobres ornamentos pendiam dos ramos ainda húmidos da noite e do mês. Não estava iluminado, apenas uns flocos de algodão que deveriam querer limpar algumas das feridas provocadas pelo transporte. Tinha-o visto a entrar de rastos sem um ai, sem sinal de que estava a sofrer. Não gostei que o tratassem daquela forma. Não merecia. 
É hoje? É. Quando? À noite. E por onde vai entrar? Não sabemos. Talvez pela chaminé. É capaz. É tão larga que não vai ter dificuldade em descer. Posso ver? Podes. Ele não se importa? Não. Só que às vezes é tão rápido que nem se deixa ver. Mas eu quero vê-lo. Está bem. Assim que chegar chamamos-te. Ainda falta muito? Um pouco. Posso ir para junto da árvore? Podes. Ele não se importa? Não. Ele é bom, não é? Claro! Até traz prendas. Ele não se esquece de vir, pois não? Não. Está descansado. Seria a última coisa que ele fazia. Ele anda perto? Talvez, não se sabe. Tenho sono. Não queres ir para a cama? Não. Eu quero vê-lo. Está bem. Vais vê-lo, descansa. Falta muito? Não. Falta pouco. Mas eu tenho sono. Então, descansa um pouco que eu vou para a sala e assim que ele chegar eu chamo-te. Pode ser! Mas chamas-me? A sério? Sim, chamo, está descansado. Está bem. Eu vou, mas não te esqueças de me chamar. Está bem, fica descansado. Não sei se dormi, se fiquei acordado ou entre os dois. Subitamente ouvi um grito a chamar-me. Ele está aqui, ele está aqui. Salto e corro num ápice para chegar a tempo. Bastava dar um pouco mais de meia dúzia de passos. Cheguei sem ter respirado nem uma vez. Ouvi algo a andar com um som metálico que se meteu entre as minhas pernas, um carro vermelho, lindo como um belo dia de primavera. Não sabia o que fazer, se olhar para o carro, vermelho, se para o local onde ele estava. Onde está? Onde está? Vai a descer as escadas. Corre que ainda o apanhas. Corre, depressa. Galguei as escadas correndo o risco de ir aos trambolhões na esperança de o ver. Na sala, ouvia, corre, corre, ainda o apanhas, ainda o apanhas, foi ele que deu a corda ao carro. Vê se o apanhas. Abro a porta e sinto o bafo frio do breu que se espalhava pela rua. Olhei e vi um vulto a voar com contornos indefinidos, mas, mesmo assim, vi a determinado momento a sua cabeça a virar-se na minha direção com o mais belo sorriso que jamais vi em toda a minha vida. Disse-lhe adeus, ele riu-se, mais uma vez, acenando-me com as mãos. Fiquei até desaparecer, imerso na escuridão silenciosa de uma noite de inverno. Subi lentamente as escadas, peguei no belo carro vermelho, dei-lhe corda, e brinquei. Perguntaram-me: Então, conseguiste vê-lo? Não respondi, deixei que o silêncio se interpusesse entre o meu carro vermelho e as perguntas que iam sucedendo. Até que chegou a minha vez de dizer. Deu-me um carro vermelho, tão lindo e que anda sozinho. Não, não consegui vê-lo, estava muito escuro. Mas não faz mal. Já tenho o que queria. Afinal, ele é mesmo meu amigo! Ainda hoje ninguém sabe que eu o vi. Mas ninguém tem de saber estas coisas. São minhas, só minhas. 

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