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"Candidato à loucura"...


Jorge Montagrão foi sempre um candidato à loucura, mas, por mais que quisesse e fizesse nunca conseguiu alcançar esse estatuto, antes pelo contrário, cada vez ficava mais lúcido e entristecido com a porra da vida. Entendia – quem sabe se não tinha algum fundamento? -, que a melhor forma de viver era na loucura, um verdadeiro paraíso em que não tinha que justificar a existência, saber de onde vinha e para onde ia, tudo porque desde muito cedo começou a desconfiar das patranhas que ouvia aqui e acolá. Os adultos não eram grandes merecedores de confiança. Uns aldrabões. Muitos eram especialistas em sacanices e trafulhices, se bem que alguns tudo fizessem para ser boas pessoas, compreensíveis e meigas. Quanto a estas sentia alguma afinidade e até desejo de protecção. Mas estes assuntos não são para abordar agora, talvez mais tarde, haja tempo e disposição. Sim, porque para falar de certas coisas não basta querer é preciso sentir e sem uma boa dose de loucura não é fácil. Pode ser que alguns aguaceiros da deusa Moria lhe agucem o apetite.
Sempre gostou de ler, para saber, para conhecer, para encontrar respostas, mas afinal só encontrava perguntas, as quais adicionadas às da sua lavra só vinham piorar a sua angústia. Mesmo assim não desistia. Desorganizado, comprava o que lhe dava na real gana, no momento. Nunca ia à procura de nada em concreto. Deixava-se arrastar pelas livrarias e alfarrabistas, de preferência com as mãos nos bolsos, propositadamente, para não se deixar influenciar pelo toque do momento, à espera de algo que lhe despertasse o desejo: - Vê esse aí! Tirava as mãos, pegava no livro, folheava uns momentos ao acaso e ficava com a sensação de que havia algo de novo, escondido, naquelas páginas. Sentia o coração a estremecer de entusiasmo, agarrava-o e dizia: - Já está! Quando dizia isso ficava mentalmente desperto e, não raras vezes, muito pelo contrário, acabava de adicionar mais um, mais dois e até três, isto se não fosse o caso de ser um alfarrabista, porque aí, às vezes era mesmo às sacadas. Saía aliviado e confiante de que iria conhecer mais qualquer coisa, não tudo, obviamente, mas algo de novo que pudesse ajudar o filho da mãe de um puzzle que dia para dia, em vez de ficar completo, teimava em aumentar de dimensões e de complexidade. Pelo menos enquanto os lia sentia um certo conforto, o suficiente para aguentar e estimular o sistema imunológico da esperança que, como todos sabemos, vai diminuindo de actividade a par do biológico, agoirando coisas nada agradáveis.
Tinha uma estranha mania. Nunca saía, nem mesmo para o trabalho sem levar na pasta alguns livros. Claro que iam e vinham, na maioria das vezes, sem ser abertos. Mas a percepção de que poderia ter algum tempo livre, nem que fosse alguns minutos, durante os quais pudesse beber do livro dava-lhe uma curiosa sensação de bem-estar. O pior é que nunca sabia qual o apetite do momento. Sendo assim, nada melhor do que levar dois ou três, bastante diferentes e, na altura, logo se via. Assim acontecia. Quando podia ler e sentia essa necessidade, retirava um dos livros que mais se adequasse à situação e lia, lia nem que fosse por breves quinze minutos, e o que lia ficava, ficava a murmurar no cérebro, despertando emoções e outras tantas inquietações.
No dia em que se lembrou de escrevinhar este texto, levava na pasta quatro obras; “A Carroça Fantasma” de Selma Lagerlof, “O Barulho das Chaves” de Philippe Claudell, “Carta sobre a Felicidade” de Epicuro e “Castelos Perigosos” de Céline. Já tinha começado a ler todos e no caso da pequena obra de Epicuro tinha-a devorado pelo menos três vezes. Mas foi a obra de Céline que o perturbou e em certa medida motivou-o para fazer pequenas reflexões. Já conhecia este autor há muito tempo. Recorda-se que num período ansioso, encontrou forma de o ultrapassar colhendo pequenas obras, cartas, selos, enfim tudo o que tivesse a ver com Ignatz Semmelweiss, o médico húngaro que deu um contributo notável para a cientificação da medicina com os seus estudos sobre a febre puerperal que, no século XIX, dizimava as recém paridas de uma forma obscena por essa Europa fora. A forma como conduziu os estudos, cientificamente correcta e inovadora, as perseguições e humilhações de que foi alvo por parte das autoridades de então e, sobretudo, dos colegas médicos que não admitiam a hipótese de serem os responsáveis pela transmissão às mulheres em trabalho de parto de infecções mortais, levaram-no à loucura, a um envelhecimento precoce e à morte prematura. Foi então que através da Internet, conseguiu obter vários testemunhos da sua vida e obra, nomeadamente, num leilão, uma dissertação de licenciatura sobre a sua vida e obra realizada em 1924 por Ferdinand-Louis Céline. Uma obra científica e literária que o deixou encantado. Foi então que começou a associar este autor com o famoso Céline, escritor maldito francês e antissemita que, tendo sido considerado como colaboracionista com o regime de Vichy, conseguiu escapar à morte por ter fugido para a Dinamarca no final da guerra, acusado de traição à Pátria. Foi ver se era o mesmo e era. Incomodou-se por ter uma obra de um escritor mal visto, mas depressa se inteirou de que tinha sido ilibado mais tarde, e até reabilitado, acabando por ser considerado um dos maiores escritores franceses contemporâneos. Mesmo assim sentia uma certa dualidade, motivada pelos inúmeros crimes ocorridos naquele período, a permissividade ou “indiferença” dos colaboracionistas com regimes pró-nazis e a genialidade do escritor acusado por Sartre. A tentação em adquirir uma obra sua materializou-se na compra dos “Castelos Perigosos” se bem que tivesse preferido ler a sua obra de marca “Viagem ao fim da Noite”. Mas como não a encontrou decidiu-se pela outra, a qual relata as suas experiências e vivências durante a guerra. Ainda bem. Desta maneira foi possível compreender melhor o escritor, a sua vida, as tragédias, as humilhações, as perseguições, os ódios e, sobretudo, uma natureza superior.
A obra foi publicada em 1957, precisamente o ano em que Jorge entrou na escola, e onde começou a sentir medos, incompreensões, violência e injustiça, uns atrás dos outros. Uma tragédia à escala de um miúdo de seis anos. nada que se compara à de Celine, mas, mesmo assim, foi suficiente para, de repente, Jorge recuar meio século.

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