"Facciosismo"...


Sou um faccioso. Ensinaram-me que tinha de pertencer a um grupo, a uma religião, a uma corrente política, a um clube de futebol e que tinha de tomar partido por um ou por outro. Na escola os rapazes faziam pequenos grupos e se não pertencêssemos a um deles levámos "porrada" de todos. Assim sempre se evitava ser agredido porque havia quem viesse em socorro. Quando pertencia a um grupo ou fação ouvia vários tipos de argumentos, eram os melhores, os superiores, enquanto os outros não prestavam, eram maus ou perigosos. Se não pertencesse ao grupo que ia à igreja diziam que era obra do diabo e que ia para o inferno, um local horrível, onde o cheiro a carne queimada deveria ser intolerável. Ouvi, algumas vezes, naquele tempo, o padre a denegrir e a ofender um coleguinha por ser filho de um pastor protestante. Como não havia mais ninguém que pertencesse aquela religião o pobre do rapaz não entrava nos nossos jogos no adro, não assistia à catequese e praticamente não brincava. Andava sempre triste. Eu, como pertencia ao grupo dominante, pedi, um dia, ao padre para o deixar entrar e assistir às nossas lições. Olhou-me com um ar furioso e a gaguejar deu-me um empurrão como se quisesse enfiar-me diretamente no inferno sem ter direito à passagem pelo purgatório. Senti medo. Ainda hoje consigo reviver o estranho brilho que libertou dos seus olhos. Não soube classificar. Calei-me e pus-me atrás de todos os outros meninos. Estávamos no coro, onde ele tocava num órgão. Fiquei-lhe com um pó dos diabos e quando voltou a teclar, e a cantar, fiz-lhe um manguito, e, pé ante pé, desci pelas escadas. Fui brincar com o menino protestante. Interroguei-me por que razão o menino não poderia entrar na igreja, o pai dele não deixava e o padre também não. Que coisa tão estúpida, pensei. Mas não fiquei por aqui. Tinha de pertencer a um clube de futebol. Na escola havia os benfiquistas, os sportinguistas, e três desalinhados, um do Belenenses e dois portistas. Eu era um destes dois. Que chatice. Fui obrigado a ser de um clube por tradição familiar. Na altura o FCP não ganhava praticamente nada, mas eu coleccionava pancada de três em pipa dos benfiquistas e dos sportinguistas, e não podia jogar por nenhuma das equipas, logo, ficava de fora. Insultavam e agrediam, tudo por sermos de clubes diferentes. Eu perguntava se era necessário serem tão brutos. Resposta, dois estalos e alguns empurrões, mas eu não me ficava, ficava era com marcas que depois em casa eram "tratadas" de várias maneiras, com mercurocromo e alguns "conselhos"! E como se isso não bastasse a besta do professor, um benfiquista ferrenho, fazia o resto, palmatória nas mãos às segundas-feiras. À entrada na sala, em fila indiana, tomávamos o "pequeno-almoço" da derrota ou do empate do seu clube. Aqui, nem os benfiquistas se safavam. Mais tarde comecei a ter opiniões políticas, inicialmente calado, em surdina, não fosse o diabo tecê-las. Não me esqueço de ser obrigado a saudar os senhores do regime, nas inaugurações, nas festividades e nas missas por isto ou por aquilo, uma chatice essa coisa de ter ir à missa para rezar pelo fulano. Eu ia, mas contrariado, e não rezava, era o que mais faltava, fingia. Claro que tinha de fingir, porque em casa ouvia que o "gajo" era um sacana da pior espécie e que tinha mandado prender e dar pancada ao meu avô. E agora tinha de rezar por ele? É o rezas! Se ele soubesse o que pensava durante a cerimónia religiosa! Pois, mas era obrigado a pertencer a um grupo.
Mais tarde, muito mais tarde, apareceram os partidos políticos, cada um com a sua ideologia. Não me foi fácil posicionar ao princípio. Sabia o que não queria, sabia que não queria pertencer a certos grupos. Com o tempo consegui ajustar-me. Porquê? Porque tinha de pertencer a um grupo, porque as regras eram essas, embora não acreditasse que algum tivesse a verdade absoluta. Com o tempo verifiquei que os partidos políticos se comportavam como grupos facciosos, arrogantes, julgando ser melhores do que os outros. Querem convencer-nos de que isso é verdade, mas não é, não passam de produtos sociais que alimentam e se alimentam do facciosismo. Em vez de conjugarem esforços e partilharem ideias para encontrar as melhores soluções para o país, não, castigam-nos com sobranceria, arrogância, petulância e uma superioridade patética. Por vezes parece-me que estou a ver aquele estranho brilho do olhar do padre quando lhe pedi para deixar entrar o menino protestante. O melhor é sair sorrateiramente, mas antes vou fazer um manguito. Aprendi muito cedo a linguagem gestual...

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