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"Voilá"...

Verão, época de férias. Eis que muitos emigrantes começam a regressar para descansar umas semanas. Mudaram muito desde os velhos tempos, quando vinham com as suas "voitures", novas e provocantes, a ponto de porem a salivar muitos dos que cá ficaram. Assustavam na condução. Sempre que via uma matrícula francesa tinha de redobrar a atenção para evitar problemas. E não era por uma mera questão de preconceito era por experiência própria e pelo que via. Também os ouvia. Aqui as coisas eram diferentes, não eram ofensivos em termos de integridade física, mas suficientemente agressivos em termos de comunicação quando misturavam o português com o prepotente francês. Falavam mal a nossa língua, o que não era novidade para ninguém, mas "compensavam" com o idioma de Voltaire e de Edith Piaff. Presunçosamente verbalizavam a torto e a direito frases e palavras francesas para poderem impor algum respeito e admiração aos demais. Enquanto as "voitures" denunciavam o seu poder financeiro, a nova língua testemunhava a sua superioridade "cultural". Formas de poderio, novas, ingénuas, típicas de quem quer mostrar que está bem na vida e a subir. Ouvia-os sentado da minha varanda. O largo ficava repleto de matrículas francesas. Traziam prendas para os familiares, muitas "botelhas" de bom vinho francês. Já entoavam a forma de falar dos gauleses, mesmo quando falavam em português. Divertia-me imenso aquele parlar meio aparvoado, mas perfeitamente compreensível. Tinham as suas razões. Os tempos mudaram, já não vêm com tanta frequência de carro. Usam o avião. Fazem muito bem. É mais seguro para eles e para os outros. Os carros já têm matrícula portuguesa. Ficam cá nas garagens das suas "maisons", que são, na grande maioria, as mesmas. Apesar de toda a evolução, positiva, ainda não perderam o trejeito de misturar frases francesas no decurso das suas conversas. É "chic", ou, então, já não sabem utilizar o seu equivalente em português. De qualquer forma provoca-me sempre um sorriso, porque faz-me recordar muitos episódios, como um que há muitos anos ouvi por esta altura. Na casa de uma vizinha a mãe advertia de forma contundente o miúdo, "faite attention, tu vas tomber", "tu vas tomber", sempre numa crescente preocupação face ao risco de queda. Advertia do perigo aos gritos, "tu vas tomber", "tu vas tomber". Claro que o lusito, nascido na periferia de Paris, caiu. Ato contínuo, a mãe recuperou a sua velha formação da terra que a viu nascer e disse-lhe alto e em bom português: - Oh meu filho da puta, eu não te disse que ias cair? Eu não te disse meu cabrão? Claro, em cima do joelho esmurrado, caiu-lhe nas trombas uma sonora bofetada e o puto pôs-se a chorar, em francês e em português...

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