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"Navegar"...


O trabalho amolece o corpo e esgota o espírito. Se juntar o efeito do sol e o peso da idade, então, tudo combinado provoca uma sensação estranha de cansaço e de saturação que me obriga a fazer algo que contrarie tamanhos efeitos.
Aproveitei a tarde para procurar um bálsamo ou uma mistela que me ajudasse a encontrar repouso e tranquilidade. Sempre que necessito desta terapêutica, e caso possa, mete-mo no carro e vou sem destino.
Para a direita ou para a esquerda? Não percebi. Perguntou-me novamente, para a direita ou para a esquerda? Sem entender bem o alcance da pergunta, respondi, para a direita. Anda bem, porque ao fundo da rua houve um acidente. Avancei e de facto vi dois carros enfaixados num entroncamento. O habitual na minha rua. Continuei e fui por velhos caminhos conhecidos, rememorando as velhas paisagens que sempre se vão modificando pela ação do tempo e do homem. Andar sem  objetivo é uma forma de acalmar e domesticar o tempo e, também, uma tentativa simpática de rejuvenescimento, mas apenas na mente.
Criei então um destino. Ao chegar renunciei-o, não sei porquê. Subi a serra e a meio, estranhamente, inverti a marcha. Desci e meti-me por uma estrada de montanha. Acabei a viagem numa velha vila, depois de passar por inúmeros locais em que a vida se esconde com vergonha ou com medo. Soube, então, que procurava o simpático e tranquilo rio, orlado por belas árvores, onde corria  uma frescura muito suave. Senti as suas margens perfumadas de inúmeras lembranças. Disse que senti, melhor seria dizer que ouvi através do cantar de milhares de cigarras. Que pena não entender a sua linguagem, mesmo assim imaginei histórias. Consigo criá-las, vê-las e saboreá-las. Calcorreei espaços solitários, cheios de sol e enfeitados de sensuais sombras. Imagens, recordações, sons, sussurros, confissões, e sei eu o que mais, alastravam pela minha mente como se os fantasmas daqueles espaços decretassem a tarde como sendo o momento de orar aos vivos, pedindo-lhes que os recordassem e que os ajudassem a reviver as suas belas histórias e reconstruindo as que lhe eram mais pesadas e tristes. Curioso, pensei, então, as almas também rezam, e logo a nós, mortais, pequenos e pobres seres que vivem atormentados com o futuro? Sim, oram, porque já não se atormentam com o futuro, apenas querem viver o passado, revisitá-lo, e se possível, nalguns casos, modificá-lo. Foi o que eu fiz, ou melhor, o que tentei fazer, reviver e modificar o passado de alguns. Como? Olhei para a beleza e suavidade do presente e ofertei-as ao passado. Tão simples. Senti que receberam o que queriam. E eu também...

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