Avançar para o conteúdo principal

"Telefone"...

A ida ao Porto, num dia de feriado em Coimbra, deveu-se à necessidade de participar numa reunião de um conselho da Ordem dos Médicos. Para evitar cansar-me optei, naturalmente, ir de comboio, o que me apraz muito. A viagem demora apenas uma hora e dá tempo para algumas leituras e descanso. Foi o que pretendi fazer. Sentei-me. Ao meu lado direito uma senhora oriunda da capital dormia. Não a incomodei, apenas sugeri suavemente que tirasse a sua mala para poder sentar-me. Assim o fez e voltou a fechar os olhos. Eu comecei o meu ritual ferroviário. Ainda não tínhamos parado em Aveiro, quando o seu telemóvel se pôs aos soluços com um daqueles toques irritantes. Começou a falar como uma Isa, preocupada com o seu menino, perguntando se estava bem. - Está sonolento? Deve ser do Atarax, não se preocupe, coitado, é por causa das comichões. Sabe, o Atarax provoca sonolência - Ah. É verdade. As alpergatas estavam uma maravilha. Tão interessantes. Gostei muito. Olhe eu queria pedir para trocar uma mala bege. A conversa saltitava de tema para tema, sempre em voz alta, desprezando os restantes passageiros, nomeadamente eu que estava mesmo a seu lado. Conversas que perturbavam. Passava do seu cansaço para o trabalho, para a história do táxi da manhã e para as caixas que tinha ainda de arranjar no instituto. Descreveu a viagem para o Porto e o "incómodo" de ir em classe conforto sem conforto, porque os bancos não rebaixavam suficientemente, não tinham almofadas e tinham coisas de plástico, um horror, um desconforto para quem viaja, sabe, entende. Em seguida passou para os pedidos. Buscar aquilo e outras coisas. Comentou a falta de jeito do marido, descreveu os desejos de um amigo que quando se reformar quer ir passar temporadas aos Açores, falou com o seu menino, olá querido, como passou, dormiu bem meu amor, olha queridinho a mamã vai a caminho do Porto, está muito cansada, mas regressa logo, você, filhinho, mais o papá e o seu irmão vão buscar-me à estacão do Oriente, sim. Depois vamos jantar e levo o menino a casa da vovó, sim meu lindo, meu pequerrucho. Enfim, poderia continuar indefinidamente a relatar as conversas e mais conversas, sempre com uma entoação enjoativa no final das frases a relembrar uma qualquer estenose nasal, profundamente irritante, e tradutora de uma certa estirpe lisboeta. Eu bem queria ler, eu bem queria descansar, eu bem queria viajar em silêncio, mas não conseguia, o desplante da senhora provocou-me enjoo. Coloquei tudo na pasta, a revista, o livro e o tablet. Anda tentei ir para a plataforma da carruagem. Entretanto, o altifalante precedido do toque de aviso sinalizou aproximação a Vila Nova de Gaia. Surpreendida, comentou nervosa para a mamã, olha será que já passei Campanhã? Estou a ouvir que vamos chegar a Vila Nova de Gaia e eu não sei onde fica! Espera um momento. Vi logo que ia sobrar para mim. - Desculpe, mas já passámos Campanhã? - Não minha senhora, é agora a seguir, felizmente! - Obrigada. Olha mamã, afinal ainda não passei Campanhã. Estou mais aliviada. E eu também fiquei, foi só atravessar a ponte...

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fugir

Tenho que fugir à rotina. A que me persegue corrói-me a alma e destrói a vontade de saborear o sol e de me apaixonar pela noite.  Tenho que fugir à vontade de partilhar o que sinto. Não serve para grande coisa, a não ser para avivar as feridas. Tenho que fugir à vontade de contar o que desejava. Não quero incomodar ninguém. Tenho que fugir de mim próprio. Dói ter que viver com o que escrevo.

Nossa Senhora da Tosse

Acabei de almoçar e pensei dar a tradicional volta. Hoje tem de ser mais pequena para compensar a do dia anterior. Destino? Não tracei. O habitual. O melhor destino é quando se anda à deriva falando ao mesmo tempo. Quanto mais interessante for a conversa menos hipótese se tem de desenhar qualquer mapa. Andei por locais mais do que conhecidos e deixei-me embalar por cortadas inesperadas. Para quê? Para esbarrar em coisas desconhecidas. O que é que eu faço com coisas novas e inesperadas? Embebedo-me. Inspiro o ar, a informação, a descoberta, a emoção, tudo o que conseguir ver, ouvir, sentir e especular. Depois fico com interessantes pontos de partida para pensar, falar e criar. Uma espécie de arqueologia ambulatória em que o destino é senhor de tudo, até do meu pensar. Andámos e falámos. Passámos por locais mais do que conhecidos; velhas casas, cada vez mais decrépitas, rochas adormecidas desde o tempo de Adão e Eva, rios enxutos devido à seca e almas vivas espelhadas nos camp...

Guerra da Flandres...

Exmo. Senhor Presidente da Câmara Municipal de Santa Comba Dão. Exmas autoridades. Caros concidadãos e concidadãs. Hoje, Dia de Portugal, vou usar da palavra na dupla qualidade de cidadão e de Presidente da Assembleia Municipal. Palavra. A palavra está associada ao nascer do homem, a palavra vive com o homem, mas a palavra não morre com o homem. A palavra, na sua expressão oral, escrita ou no silêncio do pensamento, representa aquilo que interpreto como sendo a verdadeira essência da alma. A alma existe graças à palavra. A palavra é o seu corpo, é a forma que encontro para lhe dar vida. Hoje, vou utilizá-la para ressuscitar no nosso ideário corpos violentados pela guerra, buscando-os a um passado um pouco longínquo, trazendo-os à nossa presença para que possam conviver connosco, partilhando ideias, valores, dores, sofrimentos e, também, alegrias nunca vividas. Quando somos pequenos vamos lentamente percebendo o sentido das palavras, umas vezes é fácil, mas outr...