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Autocolante...


Delicio-me com pequeninas histórias, pessoais, as contadas por amigos, as que ouço indiscretamente, as que presenceio, enfim, é só parar, olhar e escutar, elas aparecem como o velho comboio fumarento a apitar ao fundo da linha.
Às vezes registo-as, porque considero que podem ser úteis, a mim são com toda a certeza, dão-me prazer e ajudam-me a viver, mas pode ser que também sejam interessantes para outros, sobretudo para os mais pequeninos, que têm de aprender a voar, a ser autónomos como os pássaros. Mas como não são pássaros, têm de saber, também, o valor dos princípios e criar o seu código de honra de forma a ficarem bem com eles próprios, mais tarde, quando forem confrontados com as consequências das atividades humanas, nem sempre as melhores, nem sempre condignas e nem respeitadoras da condição humana. Uma batalha sem fim, uma derrota anunciada, que, apesar de tudo, merece ser travada. É bom, muito bom, sair da vida em paz, bem consigo próprio, mesmo que os seus exemplos desapareçam no ar como o mais puro dos fumos.
Final de tarde muito agradável, o telefone toca e a forma de início da conversa antecipava mais uma história. Sabes uma da tua neta? Pronto, pensei, deve ter sido coisa bonita, o que é que a miúda se lembrou de dizer ou fazer desta vez. Conta, disse entusiasmado. Fomos ao supermercado e uns senhores deram-nos uns sacos por causa do “Banco Alimentar Contra a Fome”. A tua neta ouviu e depois de recolher alguns produtos entregámo-los. Foi então que a conversa se distendeu. A menina disse que temos de ajudar os pobres, que têm de comer e que todos devem ajudar porque hoje são eles que precisam, mas amanhã podemos ser nós. A conversa, sobre a ajuda alimentar, continuou e pelos vistos todos ficaram surpreendidos com a desenvoltura e o alcance de uma garota de 4,5 anos a debitar, com o mais à-vontade possível, a sua opinião. Foi então que uma senhora lhe aplicou no peito um autocolante. A miúda ficou muito orgulhosa por esse gesto e pediu à mãe para contar ao avô. Em seguida tive de ouvir a versão da menina que explicou o que se tinha passado, dizendo que estava muito feliz e orgulhosa! Contou, contou, recontou, falou sobre o que compraram, sobre o autocolante que tinha no peito e que iria levar amanhã para a escolinha para contar aos colegas o que se tinha passado e como deveríamos ajudar os que são pobres e passam fome. Uma delícia ouvir o cantarolar de uma cachopa. Ouvia e reforçava o seu comportamento, até que no final, me pediu: - Vovô. Podes escrever uma história? - Se posso? Claro que posso. Aqui está ela, pequenina, simples, mas suficientemente forte e interessante para que mais tarde possa recordar um momento, um gesto e a criação de um valor que a possa ajudar, não a matar a fome do corpo, mas a eterna fome do espírito.
Deve ter dormido com o autocolante, a sua medalha de honra, uma condecoração que deve valer mais do que muitas comendas...

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