- Anda bem de saúde?
- Não. Nem por isso. Ando com vertigens. Tomo medicamentos, mas não fazem grande coisa.
Face triste, postura um pouco tensa, feições a relembrar que em tempos terá sido bela, largos pneus induzidos pela idade ou por qualquer terapêutica.
- O que é que lhe aconteceu? Teve algum episódio grave que a marcou?
Olhou meio surpreendida e disse:
- Sim. Foi ele.
- Ele? O que é que lhe fez?
- Ah, foi desde que as crianças nasceram.
- Tem filhos?
- Duas.
- Que idades?
- A mais velha 35 e a outra 33.
- Mas o que é que ele lhe fez?
- Tenho medo que me ponha na rua.
- Na rua? Mas ele põe-na na rua?
- As minhas filhas também lá trabalham, e eu não percebo, sou do quadro, mas não sou efetiva.
Aqui fiquei confuso sobre o "ele".
- "Ele" quem?
- O engenheiro.
- O engenheiro?!
- Sim, o engenheiro da fábrica. Meteu-se na cabeça que vou para a rua. E depois o que é que vou fazer? Nem consigo dormir.
- Não há de ser nada. Mas diga-me, há pouco falou de "ele" e das crianças, que agora são mulheres e até trabalham no mesmo local que a senhora. Esse "ele" não é o engenheiro, pois não? Não pode ser.
Calou-se e depois de um breve momento olhou-me e avançou:
- É o meu homem. Não gosto dele, nem quero nada com ele. É por causa da mulher do café, uma vizinha.
Contou a história, em traços breves, mas profundos.
- Mas isso já passou, não passou?
- Sei lá se passou ou não. Eu penso que sim, mas nem sei. Pelo menos durante mais de dez anos tive de suportar a afronta.
- São coisas que já lá vão.
- Ah, são, são! Eu sei lá. Ele diz que já não tem, não sei se tem ou não. Há mais de um ano. Mas eu também não me importo. É capaz de não ter mesmo, fumava muito e quando era mais novo também bebia. Ele diz que não tem, é capaz mesmo de não ter. Já lhe disse para ir ao médico, mas ele não está para aí virado.
- Pois é, essas coisas tratam-se muito bem hoje em dia graças a Deus, ou melhor, graças a uns medicamentos.
- Eu já lhe disse que é bem feito. Não tens? É castigo pelo que andaste a fazer. E não te ter caído já tens muita sorte. É muito bem feito. Ai, quantas pragas não lhe roguei senhor doutor, quantas, mas quantas.
A conversa continuou e a senhora desabafou.
Ao despedir-se, agradeceu-me pelo facto de a ter ouvido.
Com os ombros em acento circunflexo, dando passos curtos, mas pesados, escondia a sua tristeza apenas audível numa voz arrastada:
- Não tem. Não tem. Bem feito.
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