As manhãs são fontes de inspiração, de lembranças e de temores. A forma como se apresenta é tudo e conduz-nos a seu belo prazer pelos mais diversos pensamentos.
Hoje, o sol quente de uma manhã de verão impressionou-me fazendo recordar outras manhãs e obrigando-me a viver outros dias em que as imagens, os sons, as vozes, os aromas e as sensações se cruzam no mesmo momento embora possam ter ocorrido em dias e horas diferentes. Uma estranha miscelânea a relembrar um quadro impressionista. Parte-se da realidade do presente e pinta-se uma fantasia, estranha, mas muito mais bela do que realmente aconteceu.
Sinto o cheiro cálido de uma manhã de verão misturado com a perfumada peixeira a tresandar o seu odor característico, orlado do pão fresco da padaria. Passo em frente à taberna onde o fresco do térreo chão evapora constantemente o mosto impregnado de decénios irmanando-se com os arrotos dos fritos que vinham do fundo da cozinha. Inebrio-me com o creosote das travessas a libertar-se com o calor e mergulho no cheiro de pura água doce do rio que convidava incessantemente a procurar as suas águas. Bebo o aroma estimulante do café da noite misturado com a suavidade das tileiras sob o céu estrelado. Tudo à uma. Cheiros sobrepostos, brilhantes, quentes, suaves, delicados e agressivos, tudo no mesmo plano, na mesma dimensão, no mesmo tempo. Recordações do passado recriadas no presente. As vozes dos taberneiros e dos carregadores, os ruídos das máquinas e das carroças gemendo na calçada, os sons das quedas de água e dos cantares das cigarras, os gritos do mulherio em brasa, os pregões dos vendedores e a doçura musical do entreténs noturnos são pontos, linhas e cores dispersos no quadro que emergem com tal força que, de repente, acabo por ver os movimentos de muita gente conhecida cujos nomes se foram apagando. Tantos, talvez demais, pessoas que fingiam que viviam, os seus movimentos estão agora apagados mas as suas lembranças estão presentes. O retirar de um cigarro de luxo do maço americano, cuja cinta prateada brilhava sob os olhos dos pobretanas, chamava-me a atenção. Passar as tarde e as noites de verão encolhido na cadeira de espaldar bebericando as suas garrafas de vinho verde, justificando-se com as suas origens, recriava o quadro de lazer em que o fumo do cigarro não incomodava. Aquela hora era sagrada, parava o carro, encostava a barriga contra o balcão, dava dois dedos de conversa e enfiava os dois finos para a sossega. Entretanto, passava em frente, na estrada, a patrulha a pé. Dois guardas encafuados nas suas fardas, ostentando as velhas Mauser, suavam as estopinhas, olhando com um desejo mais do que sensual para a garrafa de vinho verde e para a cerveja gelada. Sentia-se o seu suor, um misto de suor físico e de de suor das suas vontades, que, só muito mais longe, no recato de uma taberna escondida, poderiam matar os desejos dos seus volumosos e pesados abdómenes.
Hoje apetecia-me entrar na taberna, comprar dois cigarros avulso, ir tomar uma banhoca nas águas do rio velho, ver os quadros humanos de uma tarde típica, saborear à noite um café, ouvir as cigarras, inalar os aromas das tileiras e deliciar-me com os sons dos singles da época debitados por um velho gira-discos, tudo isto e muito mais no belo e frondoso parque junto à ponte onde se podia pintar os mais belos e profundos quadros impressionistas. Tentei recriar um, apenas um quadro.
Tenho pena de não saber pintar...
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