Entrou com uma pele escura, não bronzeada pelo sol, talvez queimada ou suja pela vida. O seu ar sombrio, antipático mesmo, quase a raiar o repulsivo, incomodou-me. Formalmente perguntei-lhe, anda bem de saúde? Não. Disse numa voz demasiado baixa para que o entendesse. Repeti-lhe a pergunta. Respondeu-me no mesmo tom, mas agora olhando para mim e eu para ele. Mesmo em voz baixa os tremores do lábio deram-me a resposta, não, não andava bem de saúde. Continuei a olhá-lo em silêncio, à espera que me dissesse o que tinha. Nada, o tempo, escassos segundos, pareceram-me uma eternidade. Continuei a fixá-lo até que foi capaz de responder. Não ando bem desde há um ano, quando morreu o meu filho. Desviei o olhar para o papel, tentando fugir do que iria ouvir. Não fugi. Fui obrigado a perguntar perante tão dolorosa afirmação, foi um acidente? Novo silêncio de apenas alguns segundos, dois, três no máximo, mas que me pareceram, novamente, uma eternidade. Não. Suicidou-se. Um calafrio inesperado invadiu-me como se estivesse debaixo de uma violenta queda de água. Não sabia o que dizer, nem fazer. Procurei algo semelhante que me pudesse ajudar nesta circunstância, mas não tinha nada; algo parecido como uma morte de um filho por acidente ou doença tinha, mas por suicídio não. Foi por causa de uma rapariga. Tinha vinte e três anos. Em silêncio explicou-me como e onde tinha cometido tão dramático ato. Calei-me. Não levantava os olhos. Sentia a sua presença, incomodavam-me as suas palavras, construí espaços, momentos, tempos, dor e até a morte do jovem. Não falou muito, apenas o suficiente, e eu muito menos. O homem sofria. Afinal, a cor escura, suja, era apenas o reflexo de uma dor sentida que o atormentava desde há um ano. Tentei saber como e onde se tratava ou procurava conforto para o alívio do seu tumor maligno, o de uma alma aprisionada à morte violenta do filho. Tratava-se, mas mal, de forma errática, comendo pastilhas para a ansiedade. Verifiquei que não era acompanhado da melhor maneira. Então, comecei a falar, a orientar, a explicar o que deveria fazer e o que já deveria ter feito. Onde, como e porquê. Os olhos surpreendidos pela inversão dos acontecimentos - passei a comandar a situação -, bebiam as minhas palavras, que não prometiam nada. Eu apenas queria orientar uma alma atormentada e desprezada. Convenci-o a tratar-se como deve ser, para bem dele, bem relativo, obviamente, e cujas melhoras irão ocorrer talvez daqui a um a dois anos, mas sempre serão melhoras que se irão estender à família, aos amigos e aos colegas. Olhava-me com o ar mais estupefacto que vi até hoje, e as lágrimas, pérolas transparentes e muito grossas, brotavam dos cantos dos seus olhos. Aceitou as minhas propostas e orientações. Saiu com uma tonalidade de rosto menos escura, pelo menos com algo semelhante à cor da esperança. Penso que seria a cor da esperança, porque voltou para trás e perguntou como me chamava. Eu disse-lhe. Ele apontou. Da primeira vez com erros, da segunda não. Apontou o meu nome. Eu não apontei o dele, nem do filho. Não quis.
Tenho que fugir à rotina. A que me persegue corrói-me a alma e destrói a vontade de saborear o sol e de me apaixonar pela noite. Tenho que fugir à vontade de partilhar o que sinto. Não serve para grande coisa, a não ser para avivar as feridas. Tenho que fugir à vontade de contar o que desejava. Não quero incomodar ninguém. Tenho que fugir de mim próprio. Dói ter que viver com o que escrevo.
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