Sempre que posso procuro velhos locais, próximos no espaço e remotos no tempo. Aos domingos mergulho numa casa de pasto onde convergem pessoas do povo, talvez seja a sua extravagância semanal. Para mim não é extravagância, é mesmo uma necessidade, beber e comer num meio rico, popular, onde posso ainda auscultar o sentido das pessoas, deliciar-me com as suas conversas cruzadas e aprender a ver o mundo de forma diferente. Agora estão a aparecer os emigrantes, que, mesmo tendo alguns vivido mais de quarenta anos em França, não perderam a forma de falar das suas origens embora entremeadas pelo hipotético ganho cultural adquirido lá fora, com o qual se convencem que sabem mais e têm soluções para tudo.
Comia e bebia que nem um alarve e meteu conversa com um casal, também, de emigrantes.
- Donde são?
- Ah! Eu conheço. Conhecem fulano e sicrano?
O casal disse que sim. A partir daqui, entre duas garfadas e um copo de vinho avidamente emborcado de uma só vez, começaram a desfilar histórias atrás de histórias e formas de solucionar os problemas do país, da décima, dos carros, das portagens, como legalizar e não legalizar carros, um longo e interessante arrazoado em que ouvi de tudo.
- Vejam lá agora como são as coisas. O melhor é não ter nada. Então não é que agora a décima é para triplicar a pagar.
- Pois é, intigamente era melhor. Dizia o vizinho.
- É como os carros, custa-me mais pró legalizar do que aquilo que pagam.
- Sabe minha senhora - minha senhora não, a senhora é do seu marido, não é minha -, peço-lhe desculpa, mas são uns chulos de merda, com licença da palavra. A conversa continuou à volta de inúmeros assuntos, em que a forma de pronunciar certas palavras passaram a ser rainhas e senhoras, onde buber, abaxou, câmbra, ós pois, ar congelado e muitas outras eram pronunciadas da forma mais natural.
O casal despediu-se e o alarve continuou a mastigar e a beber. Em frente, à distância de duas mesas, um senhor de idade aproveitou o silêncio da sala de pasto para entrar na conversa.
- Olha lá, não me estás a conhecer? Sou o Zé Manel tipógrafo que andava sempre a assobiar, tinha os queixos afiados. Não te estás a lembrar de mim? Eu fazia os bailes pelas aldeias. Eu quando entrei disse para mim, eu conheci esta cara.
- O outro olhava-o e acenou com a cabeça. Depois a conversa reiniciou-se com o parceiro, explicando que esteve em Lisboa 48 anos, enquanto o outro dizia que já andava há mais de quarenta em França.
- Estás com ar diferente.
- A idade muda muito as pessoas. Há dias nem reconheci o filho do "condogueiro" e, ainda há pouco, vi uma senhora que julgava que era a mulher do gago. Pus-me a a reinar com ela e tive de lhe pedir desculpa.
- Comigo passou-se uma coisa parecida. Foi na Amadora. Vi um gajo de bicicleta e pensei que era um conhecido, um tipo muito vaidoso. Deixei-o ir ao ralenti e amandei-lhe um murro nas costas. É pá! Não era o gajo. Disse ao tipo, desculpe, julgava que era o Manel Marques. Não faz mal. Segunda-feira vou estar com ele e devolvo-lhe o murro. O tipo conhecia o Manel! Ah, Ah. Coisas. Ria-se sem placa.
O outro ouvia-o e não falava porque empanturrava a boca de comida.
- Comi que nem uma maravilha. Comi à bruta!
Entretanto o outro rematava:
- Padre sou eu que comi uma sardinha!
Aproveitou o arroto para mudar de conversa e dar seguimento à conversa.
- A gente está sem rei e sem roque. Dizem que fizeram uma democracia, mas não, o que fizeram foi uma anarquia. E para explicar a sua opinião socorreu-se de vários exemplos entre os quais um, que nunca passou pela minha cabeça.
- Vê lá que até para as filhas conhecerem o corpo de um homem tinham de tomar banho com o pai. Isto é que uma liberdade! A liberdade tem limites.
Era hora de almoço, os copos que ia contando não era por aí além, mas prometia. A tarde de hoje é de ócio, as adegas vão abrir as portas para arejar o mofo, as tascas de convívio engalanam-se com boas buchas, e, até ao jantar, pelo menos, aqueles fígados vão ter um trabalho do caraças, enquanto os seus cérebros divagam pelos acontecimentos do país e põem toda a criatividade ao dispor da gente.
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