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Gado do vento

São pequenas coisas ou inesperados acontecimentos que conseguem dar sentido à vida e alegrar, nem que seja por breves momentos, a alma.
Ao revisitar Portalegre vi com olhos de ver o frondoso e velhinho plátano. Sob a sua copa muito coisa aconteceu, se disse e se prometeu. Ainda bem. É uma espécie de alforge que guarda religiosamente algumas preciosidades. Um dos seus frutos é uma publicação com a designação "Plátano". Uma revista crítica e literária publicada como deve ser, sem periodicidade, ao sabor do tempo. Como soube da sua existência, pensei, gostaria tanto de adquirir algum exemplar.
No último dia passei por uma velha livraria e papelaria. Na montra havia exemplares de alguns números. Entrei e pedi à simpática e conversadora senhora se tinha alguns para vender. - Tenho, pois! Aqui estão. Pode levá-los todos. E os números que faltam, se lhe interessar, claro, farei tudo o que puder para os arranjar. Fiquei com todos. Sabia que no meio daquelas obras iria aprender muito e depressa. De facto, encantou-me esta preocupação cultural, crítica e artística produzida numa cidade quase que esquecida. Na primeira oportunidade sentei-me numa esplanada e não resisti a abrir ao acaso uma das edições, o número 4, outono de 2008. Li um artigo, "Minha pátria é a minha língua" - O prazer da leitura, da autoria de Georgino Rebelo Marques. O autor descreve a obra de Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, responsável por várias publicações, entre as quais destaca o famoso "Elucidário", que alimentou a vida e obra de alguns autores portugueses, nomeadamente o grande Aquilino, que à mesma deve, em grande parte, a riqueza dos termos e frases que caracterizam as suas obras. O próprio afiança que se não fosse Rosa Viterbo não teria feito o que escreveu.
Um homem notável, culto, estudioso e que deu uma enorme contribuição para a história e cultura de Portugal. Sousa Viterbo, um nome praticamente esquecido.
Hoje, como se fizesse parte do "gado do vento", uma expressão aprendida em Aquilino, e recolhida em tempos por Frei Joaquim, vadiei para as bandas de Sátão. Por que razão? Não sei. Talvez por gostar de ser livre e não programar nada. Vagabundear ao sabor do vento poderia ser o meu lema. O vento levou-me até a um santuário desconhecido, "Senhor dos Caminhos". Andei e vi um espaço belo, aprazível e concorrido com muitos romeiros. Estranhas colunas davam-lhe um ar de nobreza olímpica. Não as entendi muito bem. Deliciosas e bem trabalhadas. Afinal todo aquele espaço orlado de colunas estava inacabado. Entrei na capela onde estavam muitas pessoas a rezar. Vi o "Senhor dos Caminhos" e li algumas páginas de um livro depositado aos seus pés em que os fiéis escrevem os seus pedidos. Penso não ter cometido nenhuma imprudência! Nunca tinha visto nada igual. Do lado oposto estava uma mesa com livros sobre o santuário. Comprei um, deixando na caixa o valor correspondente sob o olhar atento do "Senhor", testemunha de que o adquiri com honestidade. Um livro adorável. Abri-o numa página ao acaso e vejo referência a Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, cujo corpo está sepultado não muito longe dali, no Convento de Santo Cristo da Fraga, onde viveu os últimos anos e escreveu parte das suas obras. Saí da capela e perguntei a um idoso sentado num muro - sofria de uma acentuada paralisia cerebral -, onde ficava o dito convento. Com muita dificuldade em falar e com um extraordinário brilho no olhar indicou-nos o caminho e a distância a percorrer. Nunca vi tamanha alegria nos olhos de alguém. Fiquei com a sensação de que teria sido a primeira conversa do dia. Agradeceu e nós também. Depois andamos pelo meio do vale e de fragas soberbas até encontrar as ruínas do convento. A igreja, imponente, dominava um vastíssimo espaço onde o silêncio mais puro era rei e senhor. Portas fechadas, naturalmente. Mesmo assim encostei-me à porta e imaginei o sepulcro. Vi e senti coisas que ele deve ter sentido naquele espaço. Bastou-me. Olhei em redor e tive a perfeita sensação que era o local mais adequado para "gado do vento".

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