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Rainha

A nudez da serra, debaixo de um sol febril, consegue despertar sensações de liberdade e de encanto. Serpentear por zonas perdidas, onde de quando em vez se pode ver a dureza da vida espelhada nos sulcos graníticos das faces de mulheres e homens solitários, ajuda a compreender o silêncio da natureza. Sem palavras, apenas um ou outro olhar que se esvazia no eterno andar à descoberta de caminhos. Caminhos vazios e aparentemente sem fim.
Acabei por chegar ao destino. Tempo suficiente para uma visita ao velho templo a fim de matar saudades da extraordinária escultura da beata, filha de rei, que, reza a lenda, era de uma beleza digna de uma deusa de Zeus. Uma rainha. Recordei de imediato a outra que tinha visto antes de subir à serrania. O templo setecentista estava aberto desta vez. Não perdi a ocasião e visitei-o. Apreciei belas imagens e o barroco tardio. Uma das imagens, pequena, a enfeitar um dos altares laterais, o da epístola, chamou-me a atenção. Tratava-se de uma versão rainha Santa Isabel, muito diferente da que estamos habituados, criada pelo escultor Teixeira Lopes no final do século dezanove a solicitação de outra rainha, D. Amélia, e que se transformou no estereótipo da sua representação. Bela, sem dúvida. Mesmo assim, gosto de ver outras, diferentes, criadas em épocas remotas, em que os símbolos permanecem como se fossem sinónimo do seu nome. Na localidade, noutra capela, um pouco mais abaixo, existe outra imagem de Santa Isabel, com as rosas nas mãos e o seu nome desenhado no rebordo. Neste caso a imagem era diferente, tinha aspeto de uma monja e do seu peito, aberto, surgia numa franja do hábito como se tivesse acabado deixado de cair, pães. Pães e não rosas. Afinal, neste caso concreto, o milagre das rosas não estava representado, mas sim a verdade, a rainha transportava pães para matar a fome, o que constitui o verdadeiro milagre. Quem é que se alimenta de rosas? Ninguém. Pão sim, pão para os têm fome. O milagre às tantas existiu, não por ter transformado o pão em rosas, mas por dá-lo. Uma curiosa e digna interpretação de quem esculpiu tão bela imagem que permanece num canto à sombra dos olhares e da vida de quem passa e reza sem saber.
Entrei na montanha despida com a lembrança da imagem e da sua simbologia. Vi poucas pessoas durante a travessia, trabalhando e comandando rebanhos à procura de ganhar o pão no meio de pedregulhos, fragas e vales perdidos.
Não há rosas naqueles locais, nem santas, nem rainhas, apenas a verdadeira natureza, dura, bela como se fosse um gigantesco templo indiferente a qualquer oração.

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