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Incisivo sorridente

Começo a viajar vezes sem conta a lugares bem conhecidos. Necessidade? Falta de originalidade? Saudade? Não importa, o que interessa é encontrar sensações que satisfaçam paixões e criem novas emoções.
Fui até à Guarda. Passeei, mergulhado em verdadeiro calor de estio, nas estreitas ruas velhas de séculos. Gosto de respirar os aromas das pedras escuras, cheias de histórias e de dramas. Olhei para o casario, a maioria triste e vazio. Consegui imaginar os pensamentos deixados nos interiores além dos que foram lavrados nas ombreiras das portas, humilhação granítica de quem foi obrigado a fugir e a mudar de religião.
De repente, ao passar por um pequeno espaço ajardinado, disse: - Lembras-te daquela velhinha que um dia encontraste neste espaço? - Recordo, pois! Começámos a falar de uma senhora muito pequenina de fabrico e ainda mais pequena devido ao tempo. Vivia numa daquelas casas velhas paredes meias com outras vazias. Passeava o seu único incisivo que reluzia quando sorria. Falava bem e explicava-se melhor. Contou a sua vida. Os velhos gostam de contar a vida, mesmo que seja a desconhecidos. Ria com prazer; gostou da atenção e da conversa. - Recordo muito bem. Era tão simpática. - Era? Questionei. - Claro. Foi já há alguns anos. Era tão velhinha. Às tantas partiu. - Nunca se sabe! - Oh. Lá estás tu com as tuas coisas. - Não gostavas de voltar a vê-la? - Gostar, gostava, mas como? Na altura tinha noventa ou mais anos. - Pois. É verdade. Sabes qual era o nome da senhora? - Não. Eu não tenho a tua memória. - Maria de Jesus. - Credo! Como é possível decorares tanta coisa. - Bom. Eu consigo, o pior são os nomes. - Pior são os nomes? E mesmo assim consegues lembrar-te? A conversa sobre a Maria de Jesus acabou. Íamos a regressar, através de uma rua da judiaria, quando vislumbrei na descida uma velhinha toda encurvada com lenço negro na cabeça, saia a raiar os tornozelos, cinzenta, blusa escura, dançando o bailado do equilíbrio. - Olha! Ela vai ali. Estás a ver? É ela. É ela. Antes que dissesse qualquer coisa e a velhinha entrasse na sua casa, que desconhecia qual era, corri e coloquei-me à sua frente, obrigando-a a parar. - Desculpe. Eu conheço a senhora. Não é a Maria de Jesus? Levantou o pescoço com muito esforço e reparei que tinha ainda o único incisivo. - Sou. Sou a Maria de Jesus Matias. Entretanto a minha mulher chegou e ajudámo-la a contornar a esquina e um buraco que podia ser perigoso. A conversa teve início de forma informal. Contou que via muito mal. Os seus noventa e cinco anos feitos no dia de São António devia ser o responsável. - Nasci num treze de junho, às dez horas, horas verdadeiras, porque naquele tempo não mexiam na hora como agora. - Sabe, minha boa senhora, além dos olhos, começo a ter alguma dificuldade em falar. Parece que as palavras já não saem como antes. Quanto ao juízo, o que é que posso dizer, olhe, está "meio por meio". - Não está nada. Está inteiro. - Está. Está. - Para onde é que vai? Para casa? - Não. Vou até ali acima ter com umas senhoras para falar um pouco. - Mas é a subir! - Pois é. Eu vou devagarinho. Só tenho de passar este bocado de sol e fugir dos carros. Esta rua está com muito movimento. Sorri, porque durante todo aquele tempo passou apenas uma viatura. A conversa continuou mais uns minutos. Agradeceu a nossa atenção e desejou-nos um bom regresso com um perfeito e audível bem-haja sob a batuta sorridente do velhinho e solitário incisivo. Desta vez pareceu-me um pouco mais amarelado. Ficámos durante alguns minutos a vê-la enquanto subia a estreita rua cheia de sombra num balançar que nunca esqueci e nem vou esquecer.
Ao passar pela rua onde está o maravilhoso verso de Sancho I, "Muito me tarda o meu amigo na Guarda", pensei, tarda mas encontro-o...

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