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Raul


Viajar por Portugal é tropeçar em histórias sem par. Descobrir o velho monumento cuja visita foi adiada, conhecer recantos sugeridos e também esquecidos, ir longe para ver o que foi feito na nossa terra, descobrir textos e ensaios nunca imaginados, deliciar com espaços cuidados e chorar por causa de outros, ficar arrepiado em locais de tragédia e de injustiça, mesmo que fosse à sombra da eterna justiça, enfim, viajar é cansar o corpo e alimentar ao acaso a alma de coisas únicas. Não é complicado registar o que foi visto ou ouvido, difícil é pintar com cores fortes e sedosas de forma a dar sentido à vida. Mas há aspetos que não vêm do fundo da história, nem dos altares da arte, apenas pequenos episódios desejosos de haver alguém que os guarde, os trate e os acarinhe.
Na passagem por uma histórica vila alentejana, pejada de figuras e de acontecimentos, lembrei-me que já eram horas de beber um café e uma água. Ao sair do carro vislumbrei um trabalhador curvado com uma pequena vassoura de jardim e uma pá. A seu lado estacionava um pequeno e curioso carro do lixo. A forma como trabalhava denotava uma terrível indolência. Varria uma folha, depois outra, enquanto empurrava pequenas areias em sentido contrário. Passei propositadamente junto dele. Vi que era pequeno, escurecido pelo sol e corado pelo vinho. Estigmas não lhe faltavam. Do outro lado da rua, quatro homens, no desempenho da sua idónea inatividade, viam o espetáculo e davam-lhe sugestões como deveria fazer. O jardineiro da câmara mantinha-se num silêncio total. Sentámo-nos na esplanada. Ninguém vinha atender-nos. Depois é que nos apercebemos que não faziam serviço para a esplanada. Razões? Desconhecidas, até porque não havia muito gente no interior. Entrámos, bebemos o café ao balcão e voltámos a sentar na esplanada para saborear o espetáculo. O trabalhador, langão até dizer chega, continuava na sua tarefa, apanhando uma folha aqui, outra acolá, até que duas voltavam a cair no chão para depois recolher uma. Outro grupo de observadores formou-se à direita. - Que tristeza. Um gajo daqueles ganha aí uns setecentos euros para não fazer nada. E tanta gente a querer trabalhar. O outro, que bebia uma "mini", atirou-lhe: - Aquele gajo está bêbado desde ontem. A bebedeira chega-lhe até aos cornos! E está naquele propósito há duas horas. O cálculo do tempo coincidiu com o meu prognóstico. Sempre no mesmo canto, dobrava-se, recolhia duas folhas e lançava-as no carrinho. Passado algum tempo, eram onze e meia, sentou-se extenuado no banco do jardim. Não sei se era do calor, do vinho do dia anterior, do vinho do dia, da aguardente ou o que quer que fosse. Sentou-se. Quando chegou às doze, levantou-se, vistoriou outro canteiro e desapareceu. Deve ter ido matar o vício e depois, provavelmente, almoçar e fazer a sesta. O carrinho ficou no local. Aproximei-me e vi que estava enfeitado com uma flor e um boneco verde de plástico. Um tabuleiro, colocado estrategicamente atrás do recipiente do lixo, talvez para recolher coisas do seu interesse, que não se enquadrassem na categoria de lixo ou de sujidade, tinha uma etiqueta visível, Raul. Deveria ser o seu nome.
Hoje, pensei nele. Será que já regressou do seu descanso? Saberá onde deixou o "eco-veículo"? Será que continua na sua árdua tarefa? Não sei. Só sei que fiquei e continuo intrigado.

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