Não me recordo quando fui àquele local pela primeira vez. Vila muito velha com
interessantes laivos de beleza natural e humana. Registei vários apontamentos, senti o odor do
esquecimento e a ternura do passado cheio de dor e de amor. Sedução ditada por paisagens
diferentes, cheias de loucas paixões.
Vi uma loja de antiguidades. Olhei para o interior repleto de coisas interessantes, mas
estava fechada. Sempre que me deslocava à vila de Frei Gil esbarrava na porta. Cheguei,
inclusive, a ir com o objetivo de adquirir algo que me interessasse. Nada. Desisti. Passei a
viajar sem outro propósito que não fosse a descoberta e deliciar-me com os encantos das
atmosferas natural e humana. Vou quando me dá na real gana. É como visitar um passado
conhecido sem saber as razões.
Um dia, sem pensar, esbarrei na vila escondida cheia de tesouros. A loja de antiguidades
estava aberta. Entusiasmei-me com as expectativas. Fui avisado para ter tento na mona, não
fosse adquirir mais uma peça; "já não há espaço para mais". Sim, eu sei, disse. Mas no meu
íntimo pensei que espaço é uma coisa fácil de resolver, o mais complicado é encontrar algo
que enchesse as minhas medidas. Entrei e vasculhei. Velhas peças, a par de novas, e alguns
quadros com qualidade, chamaram a minha atenção. Chamar a atenção é uma coisa,
sedução é outra. Eu gosto de ser seduzido por uma bela peça de arte. Não foi difícil de
descortinar que muitas das peças antigas eram oriundas de solares, igrejas e casas senhoriais
perdidas nas encostas dos montes e dos vales frondosos. Acalmei a minha ansiedade e
concentrei-me nos Cristos. Havia muitos Cristos. Alguns transpiravam sedução. Dois deles,
metidos numa vitrina, elegantes e pregados em longas cruzes, ornados de coroas redentoras
de prata, obrigaram-me a contemplá-los durante alguns instantes. Apeteceu-me falar com
eles. Eram muito belos. Fiquei pregado nos seus olhares e nas lembranças que transportavam.
Senti estar perante histórias bem guardadas. Desejos, pedidos, choros, sofrimentos e alegrias.
Tantas almas lhes rezaram nos idos. Algumas impregnaram as cruzes, os rostos, os troncos, as
DOIS CRISTOS 1
mãos e os pés do salvador, com os seus sentimentos, esperanças e lágrimas. Olhei para os dois
Cristos. Estavam lado a lado. Qual deles o mais belo. Desafiaram-me, pedindo que os levasse,
não porque não se entendessem mas por estarem fartos daquele local. Não percebem porque
têm tanto valor. Não percebem porque estão à venda. Não aceitam a forma como os tratam.
Apenas querem ser livres e passar parte do muito tempo que ainda têm para viver em locais
ou nas mãos de quem os entende e lhes fale como deve ser. Não querem orações, não querem
sacrifícios, apenas aspiram a ser amados e usufruir conversas de amor com sabor a vida sem
dor. Olharam-me e pediram-me que os levasse. Não foi a questão de espaço que me impediu
de os transferir para um local onde pudessem sentir a poesia do amor. Virei-lhes as costas e
julguei ouvir lágrimas de pesar.
Dois belos Cristos sem par, capazes de ombrear e alegrar outros que vivem no meu lar.
Talvez um dia os possa comprar. Não me esqueço deles e nem dos seus olhares. Belos. Belos e
desejosos de poderem falar e inspirar quem gosta de saborear o verbo amar.
Tenho que fugir à rotina. A que me persegue corrói-me a alma e destrói a vontade de saborear o sol e de me apaixonar pela noite. Tenho que fugir à vontade de partilhar o que sinto. Não serve para grande coisa, a não ser para avivar as feridas. Tenho que fugir à vontade de contar o que desejava. Não quero incomodar ninguém. Tenho que fugir de mim próprio. Dói ter que viver com o que escrevo.
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