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"A moeda de ouro"...


O ouro é considerado o mais nobre de todos os metais. Brilha como o sol, é doce como o mel, é maleável como o amor, incorrupto como um arcanjo e raro como a honra e a honestidade. Serve para homenagear homens e deuses. Serve para dourar santos e altares. Serve para pagar a reis e a traidores. Serve para tudo, para matar, para amar, para comprar, para vender, para roubar e para ostentar. Metal forjado na morte das maiores estrelas do universo, e lançado na imensa escuridão do universo, acabou por cair nas mãos dos humanos, que, deslumbrados com as suas características, sentiram desde cedo estar perante o sinal mais terreno do divino. Os deuses criaram o ouro num tempo antes do tempo, muito tempo antes de criar o homem. O ouro, lágrimas brilhantes dos deuses que habitaram as estrelas, faz chorar, alegrar ou matar quem lhe tocar.
Oferecer uma peça de ouro como símbolo de respeito, de admiração ou testemunho de um ato faz parte de uma liturgia em que as suas características, únicas, são realçadas. Sendo raro, e por isso muito valioso, passou a ser utilizado como símbolo máximo de nobreza. Coração de ouro, vale o seu peso em ouro, menino de oiro, a sua palavra é de ouro, fechar com a chave de ouro, são expressões que realçam o seu poder e simbologia.
Já recebi muitas atenções, desde um suave sorriso, um brilho no olhar, um toque delicado com as mãos, belas e curtas palavras, pequenos objetos, uns simples, outros mais elaborados, enriquecidos ou humildes, já recebi quase de tudo. Não é o seu valor intrínseco que está em causa, é apenas o gesto que o acompanha ou o próprio gesto isolado. Esses momentos são cruciais, é "ouro" do mais fino quilate, raro e muito valioso, que permite esquecer a outra faceta humana, a faceta que não quero recordar.
O senhor, com ar aristocrático, interpela-me delicadamente. Não me foi difícil identificá-lo, mas foi-me mais difícil recordar um pequeno episódio ocorrido há um quarto de século. Talvez antevendo a minha falha de memória foi direto a esse momento o qual surgiu com toda a clareza vivenciando-o como se tivesse ocorrido ontem. Lembrei-me do diagnóstico, da gravidade do mesmo e do meu "atrevimento" em ter tratado em regime doméstico uma situação que exigia hospitalização. Mas foi há vinte e cinco anos, por esta altura, época de férias, seria aborrecido ter de o afastar do seu local de veraneio. Agradeceu-me imenso a atenção que tive nessa época.
Atribui-lhe, sem saber a razão, a idade que a minha mãe teria hoje. Talvez devido à forma como falou. Via-se, apesar da agilidade física, que sentia o peso do tempo, essa enigmática substância de que somos feito. Silenciosamente colocou em cima da mesa uma bela moeda de ouro. Fiquei surpreendido, mas pelo gesto vi que era para mim. Delicadamente fez-me compreender o sentido e o alcance do gesto. Há situações em que as palavras merecem ser dispensadas para dar lugar à linguagem dos sentimentos, foi o que fizemos. Apenas lhe disse, depois de ter agradecido a oferta, imaginando rapidamente a origem, a viagem e a história da peça de ouro, que iria registar o acontecimento. Uma pequena história a juntar a tantas outras que vou colecionando ao longo da vida. Esta revela um gesto de ouro tão belo como a própria moeda, um duplo momento doirado. Guardar a oferta sem lhe dar o significado que que lhe é devido é votá-la ao esquecimento. Vou guardá-la numa caixa em cima deste texto, para que o episódio não seja esquecido e quem a herdar irá saber as razões da sua existência e quando sabemos o porquê acabamos por incorporar valores, valores tão nobres como as lágrimas de deuses que um dia viveram em gigantes e enigmáticas estrelas. 

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