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"Milho-rei"


Noutros tempos, nesta época, ocorriam interessantes rituais ligadas à vida e à subsistência das gentes. Um deles tinha a ver com as descamisadas. A azáfama era uma constante. À noite, sob o tremelicar de candeeiros de petróleo, ou desfrutando os olhares da lua, curiosa e cúmplice, os trabalhadores sentavam-se em círculo para descamisar o milho. Uma forma de socialização que, também, permitia certos avanços ou namoricos, mesmo sob os pelos das ventas de algumas mães mais radicais. Sempre ouve algum paralelismo entre o fundamentalismo, seja ele qual for, e o aparecimento de pelos nos cantos dos bigodes de certas mulheres. Outras, mais tolerantes, aceitavam com naturalidade as brincadeiras, que não eram propriamente coisas de brincar, porque dali saíam, muitas vezes, compromissos para a vida inteira. Fosse qual fosse a atitude das vigilantes, nessas noites ocorriam episódios curiosos. Um deles dizia respeito ao milho-rei, quem o encontrasse tinha direito a beijar e abraçar os presentes, sobretudo a que queria catrapiscar ou já namorava. Era uma delícia ver aquela roda, cada um com o seu cesto ou monte de espigas a descamisá-las. O que eu queria era ver a espiga do milho-rei. Nunca tinha visto nenhuma, apenas ouvia histórias. Cantavam, falavam, bebiam, comiam, mas a espiga com grãos vermelhos nada. O sono já começava a apertar quando um matulão, que gostava de rir por tudo e por nada, ou, então, já pelo vinho, gritou, "milho-rei, milho-rei"! Eu estava atrás dele e vi que fez batota, retirou do bolso uma espiga já descamisada, fingindo que estava no cesto. Como era catraio não disse nada. Depois de uma curta calmaria, resultante do pregão, todos começaram num alarido a ponto de incomodar a lua, que, momentaneamente, desapareceu. O malandro não esteve com meias medidas, beijou as moçoilas, particularmente uma, por acaso bem fornecida. Um beijo acompanhado de um valente aperto capaz de arrebentar os seus volumosos balões.
No dia seguinte, de manhã, contei à minha avó a aldrabice do trabalhador matulão. Disse-lhe que o tinha visto a retirar uma espiga vermelha do bolso das calças. Riu-se com mais intensidade do que era habitual, mas não comentou nada. Perguntei-lhe se tinham encontrado milho-rei a "sério". Disse que sim. Foi buscar duas espigas e vi perfeitamente que eram novas, porque os grãos ainda estavam "húmidos". Foi a segunda vez que vi milho-rei, a primeira foi na noite anterior, mas já era "velha". Estas, não, eram mesmo novinhas em folha.
Lembrei-me deste episódio, porque o grupo de cantares tradicionais, que atuava no Paço do Concelho, à noite, junto à ribeira, começou a entoar a canção "Milho-rei". "Quem tem milho-rei? Quem tem, quem terá? Qual é a maçaroca. Que a sorte lhe dá?"
Pois, há sorte e sorte! Se eu tivesse, naquela época, a idade deles, também era capaz de fazer a "minha", porque o motivo assim justificava... 



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