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"Um homem e um cão sem nomes"...


Instintivamente desci ao rio Douro e embrenhei-me no antigo reino de Castela e Leão. Percorri um planalto dourado, semeado de pedregulhos, desertificado, apenas entrecortado por pobres e esqueléticas aldeias. Apontei para Zamora. Lembrei-me de em miúdo ouvir vezes sem conta que o tratado que reconheceu a independência de Portugal foi assinado naquela localidade. Nunca esqueci o nome e fiquei sempre com curiosidade de ver onde foi assinado o documento mágico que nos deu origem. Hoje concretizei uma peregrinação longamente adiada. Escrutinei vários locais que não me surpreenderam em demasia. O habitual das cidades espanholas. Alguns vozeirões, sobretudo femininos, arranharam-me os tímpanos ferindo o entendimento e a paciência. Cumpri o meu ritual. Pus-me a pensar quantas daquelas pessoas, que, aparentemente, circulavam sem um sentido definido, conheceriam tal facto e o que diriam se lhes dissesse a razão da minha presença naquela cidade, talvez um misto de espanto e de desprezo. 
Rumei a Portugal e fui direitinho até Sendim. A última vez que por ali andei foi há cerca de trinta anos. Tinha ficado numa pequena residencial mesmo por cima de um restaurante conhecido pela excelente posta mirandesa. Nada melhor do que recordar certos episódios, inclusive gastronómicos. À época, o sino da igreja, que ficava mesmo em frente, batia com tal intensidade as horas e as meias horas que, até, deveriam ser ouvidas, já não digo nada, no outro país. Que noite! Ainda hoje as recordo.
No dia seguinte cumprimos o ritual dos pequenos passeios. A certa altura vislumbrámos um jovem com dificuldades na marcha. Os joelhos não dobravam e caminhava com dificuldade imitando um S. Um tipo de marcha que atraiu a nossa atenção, ou melhor, a da minha filha do meio que, com os seus quatro anos, se apercebeu das limitações do menino. Menino que deveria ter, também, limitações de natureza cognitiva. Encostado a uma pequena coluna, foi abordado pela Inês, que, passado pouco tempo, me pediu para levar o menino connosco. Olhei para ela, no modo interrogador, e esperei que me desse uma justificação. Determinada explicou-me: -É para o tratares. Repetiu mais do que uma vez e pediu até ajuda à mãe para que intercedesse nesse sentido com a teimosia típica de uma criança de quatro anos para as quais a dialética não tem qualquer utilidade. Entrámos no carro. O jovem deficiente despediu-se acenando tristemente com a mão e, ao mesmo tempo, agradecia a nossa atenção com uns olhos alegres e humildes. Ao longo do tempo, de quando, em vez, este episódio era relembrado a propósito de pessoas que, em dificuldades, necessitavam de algum tipo de ajuda. 
Hoje, sentados numa esplanada, vimos um homem andrajoso, com dificuldades na locomoção, a caminhar num estranho S. A pele, encardida pelo tempo, pela má alimentação e pela exposição ao sol de dia e à lua de noite impressionava. Uma marca típica dos sem-abrigo. Sentado num pilar, acompanhado de um cão que dormia junto, olhava para o mundo sem o compreender.
Aproximámo-nos e metemos conversa. - Boa tarde. Olhou sem dizer nada. - Como é que se chama? Encolheu os ombros e disse: - Não sei. - Não sabe seu nome? - Baixou a cabeça e repetiu: - Não. - Tem irmãos? Olhou-nos e agarrou em três dedos com a mão direita. - Como é que eles se chamam? - Encolheu os ombros e voltou a dizer numa voz baixa: - Não sei! - Não sabe? Antes que voltasse a repetir o "Não sei", fiz-lhe uma pergunta cuja resposta já adivinhava. - O que é que faz? - Nada. Enquanto dizia nada arregaçou as calças, mostrando duas pernas atrofiadas e uns joelhos anquilosados, provavelmente de nascença, que nunca se dobraram. - Onde dorme? - Aqui, apontando com o dedo o local onde se encontrava sentado. - Na rua? - Sim, na rua. - E como é que come? Apontou o dedo para o café em frente, indicando que a comida deveria vir dali. - Tem pais? - Não, já morreram. O cão, indiferente à conversa, dormitava ao seu lado. - O cão é seu? É. Riu-se. - Como é que se chama o seu cão? Encolheu os ombros e disse: - Não sei. - Não sabe? Então como é que o chama? Olhou-me espantado e fiquei na dúvida se alguma vez teria chamado o cão, talvez seja o cão que o chama na sua voz.
Entrámos no carro desapontados e até angustiados com este quadro. Quando iniciei a marcha, o senhor começou a acenar tristemente com a mão e, ao mesmo tempo, agradecia a nossa atenção com uns olhos alegres e humildes. Foi então que vimos que era o mesmo ser humano de há trinta anos...

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