Avançar para o conteúdo principal

"Estrela cadente"...


Lembro-me das noites quentes de verão. Não havia televisão e os fracos candeeiros mal conseguiam imitar as estrelas. Olhava admirado para aquele esplendor noturno em que as cigarras enlouquecidas de alegria enchiam o céu de sons fabulosos. As estrelas, agradecidas, tremelicavam de prazer. Uma sinfonia da natureza acompanhada pelo doce e suave resfolegar da ribeira que a meus pés sussurrava de felicidade. A meu lado, na varanda de madeira e um pouco inclinada pelo peso da idade, os meus avós e um ou outro tio e tia do mesmo rebanho conversavam sobre coisas que vinham de outros tempos. Histórias e lendas que me encantavam tanto ou mais do que a sinfonia das estrelas, das cigarras e da ribeira envergonhada pelo estio. Eu ouvia-os em silêncio e só falava quando propositadamente via que interrompiam a narrativa querendo passar para outra. Eu não deixava, enquanto não acabasse a primeira. - Ainda está acordado. Ouvia-os dizer baixinho -Pois estou! Dizia um pouco mal-humorado. Sorriam sem que conseguisse ver nitidamente os seus lábios, mas sorriam, eu sabia que estavam a fazer de propósito. E a história continuava. - E depois? Eu não tolerava grandes pausas. - E depois? Por vezes era eu que os interrompia, como aconteceu uma vez. Um belo rasto brilhante e azulado rasgou o céu iluminando o viaduto e a igreja. - O que é aquilo? Disse muito surpreendido. - É uma estrela cadente. - Uma estrela? - Sim. Uma estrela que caiu do céu. - As estrelas caiem do céu? - Sim, às vezes cai uma ou outra. - E esta? Onde é que caiu? Posso ir buscá-la? Eu queria tanto ter uma estrela. - Nunca ninguém conseguiu apanhar. Elas não deixam. Não gostam que lhes toquem. A única coisa que podes fazer é pedir-lhes um desejo. - A sério?! - Sim. A sério. Só que nunca podes contar qual foi o desejo que pediste, porque se disseres nunca mais se vai realizar. - E agora? Quando é que eu posso ver outra estrela a cair do céu? - Não sei. Tens de estar atento e olhar para o céu. Eu fiquei a olhar para o céu, indiferente às histórias, com a esperança de pedir um desejo, mas o sono atacou-me numa breve fração de segundos. Naquela noite sonhei com belas e misteriosas estrelas cadentes e para cada uma delas pedi um desejo. Não me recordo quais foram esses desejos, mas decerto foram satisfeitos.
Hoje estou a olhar para a constelação de Perseu à espera de ver uma estrela cadente, porque queria pedir-lhe um desejo. Não vejo nada, nem estrelas, nem lágrimas de São Lourenço e nem ouço as cigarras ou o leve e doce sussurrar da ribeira a beijar as suas pedras. Nada. Resta-me sonhar com uma estrela cadente e pedir-lhe um desejo. - E depois? E depois? Depois não conto o que lhe pedi...

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fugir

Tenho que fugir à rotina. A que me persegue corrói-me a alma e destrói a vontade de saborear o sol e de me apaixonar pela noite.  Tenho que fugir à vontade de partilhar o que sinto. Não serve para grande coisa, a não ser para avivar as feridas. Tenho que fugir à vontade de contar o que desejava. Não quero incomodar ninguém. Tenho que fugir de mim próprio. Dói ter que viver com o que escrevo.

Nossa Senhora da Tosse

Acabei de almoçar e pensei dar a tradicional volta. Hoje tem de ser mais pequena para compensar a do dia anterior. Destino? Não tracei. O habitual. O melhor destino é quando se anda à deriva falando ao mesmo tempo. Quanto mais interessante for a conversa menos hipótese se tem de desenhar qualquer mapa. Andei por locais mais do que conhecidos e deixei-me embalar por cortadas inesperadas. Para quê? Para esbarrar em coisas desconhecidas. O que é que eu faço com coisas novas e inesperadas? Embebedo-me. Inspiro o ar, a informação, a descoberta, a emoção, tudo o que conseguir ver, ouvir, sentir e especular. Depois fico com interessantes pontos de partida para pensar, falar e criar. Uma espécie de arqueologia ambulatória em que o destino é senhor de tudo, até do meu pensar. Andámos e falámos. Passámos por locais mais do que conhecidos; velhas casas, cada vez mais decrépitas, rochas adormecidas desde o tempo de Adão e Eva, rios enxutos devido à seca e almas vivas espelhadas nos camp...

Guerra da Flandres...

Exmo. Senhor Presidente da Câmara Municipal de Santa Comba Dão. Exmas autoridades. Caros concidadãos e concidadãs. Hoje, Dia de Portugal, vou usar da palavra na dupla qualidade de cidadão e de Presidente da Assembleia Municipal. Palavra. A palavra está associada ao nascer do homem, a palavra vive com o homem, mas a palavra não morre com o homem. A palavra, na sua expressão oral, escrita ou no silêncio do pensamento, representa aquilo que interpreto como sendo a verdadeira essência da alma. A alma existe graças à palavra. A palavra é o seu corpo, é a forma que encontro para lhe dar vida. Hoje, vou utilizá-la para ressuscitar no nosso ideário corpos violentados pela guerra, buscando-os a um passado um pouco longínquo, trazendo-os à nossa presença para que possam conviver connosco, partilhando ideias, valores, dores, sofrimentos e, também, alegrias nunca vividas. Quando somos pequenos vamos lentamente percebendo o sentido das palavras, umas vezes é fácil, mas outr...