"Nossa Senhora da Misericórdia e Cisco Kid"...




Tive de ir a Viseu, apenas por uma simples razão, gosto de ir, gosto de frequentar aquele local. Conheço a cidade desde há muito tempo - desde que me conheço -,
  e não me canso de calcorrear as suas ruelas vezes sem conta. É um ritual, quase uma obrigação. Ir sem motivo é o melhor motivo para encontrar o que ainda não descobri. Entrei na igreja da Misericórdia, mas antes consegui ver o museu, não o de Grão-Vasco, não o do tesouro da Sé, mas o modesto e elegante museu da Misericórdia. Cuidado, simples, elegante, espaçoso e convidativo a reflexões e análises. Adquiri uma obra de Alexandre Lucena e Vale, "Beira Alta, Terra e Gente", escrito quando era menino e moço. Comecei a lê-lo numa esplanada, trago-o comigo e vou deliciar-me com a sua prosa. Logo nas primeiras páginas, o autor faz a descrição das suas viagens. Tinha que passar, naturalmente, por Santa Comba, terra que fecha e abre as portas da Beira Alta no seu entender. Aqui chegava a descansar e a tomar café na "Ambrósia", restaurante, café e dormitório, que porta o nome de uma velha tia do meu pai. O relato que faz das paisagens e das viagens, naquilo a que o autor chama "Ramal de Viseu", que não era um ramal, mas sim uma linha, a linha do Dão, seduziu-me e fez-me reviver aqueles períodos, sobretudo quando escreveu a obra, altura em que já andava na escola. 
A Linha do Dão "começava" precisamente em frente da porta da minha casa e tinha cinquenta quilómetros, o que lhe dava o estatuto de linha e não de ramal. Muitas vezes andei naqueles comboios movidos a vapor. As viagens chegavam a durar duas horas num trajeto imperdível em que as paisagens me fascinavam. Nunca me cansei de as ver. O entusiasmo era tão grande que chegava a viajar nas plataformas e passava de carruagem para carruagem a imitar os cowboys dos livros aos quadradinhos. Imitava muitas vezes o Cisco Kid, um dos meus heróis favoritos da banda desenhada. O meu atrevimento tinha um senão, ou melhor, dois, era quando as fagulhas me entravam nos olhos. Ia logo a correr para junto da minha mãe, porque um cisco no olho é muito incomodativo, provocava does. - Tens um cisco no olho? Mas tu não és o Cisco Kid? Como é possível o Cisco Kid ter um cisco no olho? Não dizia nada ao trocadilho, o que queria mesmo era que o tirasse. Com cuidado, um lenço branco e uma rápida sopradela ficava livre do tormento, embora sentisse um ardor que deveria ter tradução num olho bastante vermelho. Assim que ficava livre do incómodo, punha-me a correr pela carruagem para regressar às plataformas. Os avisos eram constantes. - Tem cuidado Cisco. Tem cuidado com os olhos. Vais chegar com a cara e a camisa toda suja. Ficas enfarruscado. Vai ser uma vergonha. Não esfregues a cara. Ouviste? - Sim. Ouvi. Este era o segundo senão! - Compras-me uma revista do Cisco Kid? - Só se te portares bem. - Mas eu estou a portar-me bem. O barulho da máquina a vapor, e o som muito fino e prolongado do apito, que não me deixava ouvir muito bem, deu a entender que sim, que ia comprar uma revista aos quadradinhos, coisa que só praticamente se conseguia arranjar quando íamos a Viseu.Uma ida a Viseu, uma visita à Misericórdia e a compra de um excelente livro sobre a Beira Alta, levaram-me a regressar de comboio, a brincar nas plataformas das carruagens, indiferente às fagulhas, aos ciscos, ao enfarruscamento, porque trazia um belo e inebriante livro de aventuras de Cisco Kid, do seu companheiro Pancho e do seu cavalo Diablo. 
Que diabo de associação! Tudo por causa da Nossa Senhora da Misericórdia.
Valeu a pena ter ido a Viseu. 

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