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"Miranda do Douro"...


Escolhi Miranda do Douro para iniciar o meu período de repouso. Trás-os-Montes fascina-me desde sempre, devido a uma estranha beleza revestida de alguma rudeza e de muita cordialidade. Aprecio as suas gentes e tudo o que fazem, com sacrifício, denodo e coragem. Gentes muitas vezes esquecidas e só lembradas em situações especiais. 
Há muito que não vinha até estas paragens, mas não me foi difícil encontrar velhos locais. Passado pouco tempo comecei a sentir o efeito transmontano entranhado no meu espírito. Dei as minhas voltas, adquiri livros em mirandês e pus-me a ler contos e lendas nesta língua fugidia e encantadoramente sonora. Fiz alguns esforços para escrever um pouco na nossa segunda língua falada por tão poucas pessoas. Confesso que me apetece aprender a falar mirandês, porque sinto que só assim poderia conhecer o sentido e o significado de muitas histórias que tem escondidas e identificar-me com a alma de Trás-os-Montes. 
Hoje, respirava-se um ar triste, difícil de explicar como se o deus da morte andasse a passear pelas ruelas e escarpas. 
O restaurante estava praticamente vazio. Gentilmente, no final da refeição, a jovem proprietária meteu conversa. - Hoje, Miranda está muito triste.- Disse com uma voz chorosa. - Está a chegar o bombeiro que morreu queimado. Falou dele, e dos outros, conhecia-os muito bem. Frequentavam o seu estabelecimento. - Sabe, aqui, em Miranda, conhecemo-nos todos uns aos outros. Miranda é uma aldeia. - Falava connosco como se nos conhecêssemos há muito. Despedimo-nos, e a poucos metros, na rotunda, começámos a ver um ajuntamento. Quando nos aproximámos vimos uma enorme onda humana paralisada num mutismo de respeito. Pessoas sentadas, em pé, em cima dos muros, nos passeios, nas varandas e nas janelas às quais se juntavam a cada minuto mais gente que vinha de todo o lado. O quartel dos Bombeiros revelava a tristeza da dor colocando os seus homens e mulheres em posição para receber o corpo do malogrado bombeiro cujo cortejo todos esperavam. Sentámo-nos e esperámos a chegada do cortejo fúnebre. O tempo passava sem darmos conta, e sempre mergulhado num silêncio que feria os sentimentos de todos os que ali estavam. Chegou o cortejo precedido por um carro da GNR. Levantaram-se todos. O carro fúnebre entrou no quartel para que fossem prestadas as devidas homenagens. Ouviu-se, então, os lamentos e os choros dos familiares mais próximos. Sons que cortavam o silêncio da noite e da multidão. Após ter terminado a cerimónia constitui-se um novo cortejo após um longo toque de lamento da sirene. O cortejo dirigiu-se a pé para à Sé. Colocámo-nos entre a população e participámos na cerimónia e no velório a um bombeiro que nunca conhecemos. Só sei que morreu. Deu a vida no combate a um incêndio. Nesta noite, que já vai longa, eu e a minha mulher fizemos o que deveríamos ter feito, participámos nas cerimónias fúnebres de um herói. Também somos mirandeses. 

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