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Limões...

Convivi sempre com pessoas de idade e aprendi muito com elas.
O conceito de que a idade acarreta bom-senso, paz, serenidade e sabedoria é verdadeiro, mas só em parte. Acompanha-a outras facetas, ângulos sombrios e tristes, marcadas pelo arrependimento, subversão, doença, sofrimento e a estranha percepção de que o fim está ao virar da esquina mais próxima.
O livro, “A mesa de limão”, de Julian Barnes, escritor britânico, demonstra, através de vários contos as diferentes realidades emergentes no decurso do envelhecimento. A escolha do título, baseou-se na simbologia chinesa, segundo a qual o limão representa a morte.
Ao mesmo tempo que lia esta obra, deliciava-me com uma outra, “Gente de palmo e meio” de Augusto Gil. Os contos deste genial autor focam as crianças com as suas aspirações, visões do mundo, virtudes, traquinices, medos, desejos, insegurança, tragédias, alegrias e sempre muita esperança mesmo entre os mais desafortunados; em perfeito contraste com a obra de Barnes. Augusto Gil oferece-nos doces e suculentas laranjas que, com o tempo, e na perspectiva “barniana”, acabarão por se transmutar em amargos limões.
A primeira vez que tive a noção do que era a demência ocorreu quando tinha acabado de entrar na faculdade. A tia São, que conheci sempre velha, tinha perdido o único filho quando era nova e mais tarde o marido, era uma pessoa alegre, seca de carnes, com um permanente sorriso infantil, exímia contadora de estórias, fazia de tudo e, sobretudo, adorava conversar. Vivia num concelho vizinho. Quando a visitava, fazia-me uma festa dos diabos, do género: - Oh Manelzito, como estás crescido! E logo a seguir: - E como vai a escola? Contava-me estórias e preparava-me um lanche em que era obrigado a comer um pão enorme de centeio, quentinho, barrado generosamente com manteiga e ornamentado com uma boa lasca de presunto, acompanhado, quase sempre, de uma valente caneca de café de cevada. Mas, às vezes, sobretudo no Verão, sem que mais ninguém soubesse, ofertava-me um copito de vinho morangueiro, fraquito, que surripiava na adega, onde me levava a pretexto de qualquer coisa. – Não digas a ninguém que eu te dei o vinho! Estás a ouvir? Era a única vez que ficava séria! Claro que não me fazia rogado!
Quando adoeceu foi para casa da minha avó. Ao princípio não me apercebi bem o que se passava. Tinha longos momentos de lucidez. Mas de tempos a tempos, virava-se para mim e dizia: - Oh Manelzito, como estás crescido! Como vai a escola? E eu lá lhe dizia, claro. Passados pouco minutos, depois de silêncios confrangedores, olhava para mim e perguntava: - Quem és tu? – Então tia, não me está a reconhecer? Olhava, olhava e dizia com expressão de satisfação: - Oh Manelzito, como estás crescido! E como vai a escola? Depois abria a janela da sua mente e conversava normalmente, contando coisas do passado e interessantes episódios, alguns das quais nunca tinha ouvido, sempre com o seu sorriso infantil.
Com o tempo a lucidez foi-se apagando e os períodos de reconhecimento do género: - “Oh Manelzito, como estás crescido! E como vai a escola?”, tornaram-se menos frequentes, até que a janela do tino se fechou definitivamente. Fiquei sem o seu sorriso infantil e sem as estórias encantadoras. Passou o resto da vida, se é que se podia chamar vida, num estado lastimável.
Recordei-me da tia São, mulher do povo, dura, simples e culta, que poucas vezes deverá ter saído de um círculo com um raio de dez quilómetros, devido aos seus contos - a lembrar, embora à distância, Augusto Gil. Obrigava-me, no fim das nossas conversas, a retirar as conclusões morais das mesmas, contos deliciosos. Sorria e só me largava quando ficava satisfeita. Um verdadeiro exame oral! 
Sempre me incomodou esta alteração das capacidades cognitivas. Como é possível que pessoas tão brilhantes acabem neste estado, do outro lado do espelho da sua forma de ser. Subitamente, recordo a antiga primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher, que acabou num estado idêntico à minha tia São.
O fenómeno da demência está a tomar proporções epidémicas. Há alguns anos, a imagem de Adolfo Suarez, que desempenhou um papel importante na transição democrática em Espanha, caminhando ao lado do rei João Carlos, desconhecendo o papel que teve naquele país, incomodou-me. Outros exemplos de políticos famosos que exerceram com brilhantismo as suas actividades acabaram por vir a sofrer desta terrível doença, caso de Ronald Reagan.
É estranho que muitas pessoas brilhantes, quer tenham sido presidentes, primeiros-ministros, cientistas, artistas ou simples mulheres e homens do povo, mas que revelaram um qualquer traço de superioridade ou até de genialidade, acabem por perder o juizinho.
Será que estamos perante um caso de pleiotropia? Vantagem na vida adulta e desvantagem na velhice? Laranjas doces que acabam por transformar-se em limões?
Mas, pensando bem, quem quer comer laranjas amargas?!

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