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Bronze...

Tinha um nome muito esquisito. Uma situação que começa a ocorrer com alguma frequência. Fiquei com curiosidade. Como será? Ao entrar vi que era africana. O tom bronzeado pelos genes traduzia um aspeto robusto. Aparentava saúde evidente. Com um olhar misterioso, e um comportamento de avezinha assustada, lançou-me um sorriso tímido como a querer dizer, não sei por onde começar. Balbuciou à minha pergunta sacramental e arrematou logo que não estava doente, só que não conseguia dormir e sentia-se ansiosa. Deu o toque para dirigir a conversa. Apercebi-me que ela saberia fazer melhor o diagnóstico do que eu. Perguntei-lhe se sabia quais as razões para o seu estado de ansiedade, mas nem dei tempo que respondesse, emendei logo, dizendo-lhe, então diga-me o que é que se está a passar. Sorriu, baixou os olhos e contou-me que o namorado estava emigrado num pequeno estado europeu. A última vez que estiveram juntos foi no princípio do ano. Desde então nunca mais lhe telefonou, exceto no dia em que o filho, de dez anos, fez a comunhão. Mas adiantou de imediato que o filho não era dele, mas de uma relação anterior. Nessa altura ficou a saber que vinha de férias no princípio de julho. Ligou-lhe várias vezes, enviou mensagens e nada. Preocupada com facto começou a colocar hipóteses. O que ela queria era que ele lhe falasse e explicasse o que estava a acontecer, quais as razões para o seu comportamento. Tinha, inclusive, a suspeita de que já estaria em Portugal e em casa da mãe. Explicou-me que foi lá que tinha vivido até outubro passado, mas depois preferiu sair com o filho para uma habitação só sua. Não foi difícil perceber as razões. Aprofundei-as e soube do racismo paroxístico da senhora. Claro que comecei a associar todos os elementos deste puzzle. A moça, escultura de bronze e olhos esverdeados, simples, inteligente e devotada ao respeito e consideração que acha que deve aos demais, mantinha a esperança de o ver e ouvir para resolver o assunto. Não lhe dei muita esperança. Mesmo assim reiterou que iria esperar. Sorri com a sua determinação e princípios com que se norteia. Nova, mas com experiências desagradáveis da vida. Contou-me as violências que tinha sofrido com o companheiro anterior, a ponto de ter estado durante dois anos numa casa abrigo para se proteger a si e ao filho. Obviamente que o pai nunca mais ligou ao miúdo. - Foi, felizmente, para África. Disse com um misto de satisfação e alívio. 
A conversa continuou. Fiquei muito impressionado com a jovem de trinta anos. Forte. Equilibrada. Sincera. Digna. Lutadora. Pronta a ir à vida com garra e honestidade. Uma verdadeira deusa bronzeada. Debaixo da pele senti a brancura de um comportamento que vestia uma alma de azul celeste. Sim, se as almas tiverem cor, tem de ser do mais belo e doce azul que possa existir. Uma deusa que emergiu do azul do mar no meio de espuma branca, envergando uma digna cor de bronze.

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