"Muros"...

Lembro-me perfeitamente quando começaram a construir o "muro de Berlim". Ouvia falar da cortina de ferro e a minha imaginação infantil teceu a respetiva imagem, uma cortina gigante que em vez ser de renda, para cobrir a janela, era de ferro. Mas como vão colocar a cortina? Que raio de janela é essa que tem uma cortina desse tipo? Como fechar e como abrir a cortina? Para quê? Não percebia a linguagem dos adultos. Era difícil entendê-los. Quando se começou a falar do muro foi um pouco mais fácil. Muros eram coisas que não faltavam. Tantos muros ao longo dos caminhos, à entrada das quintas, fazendas e até havia na escola onde me sentava e fazia exercícios de equilíbrio com risco de cair de uma altura nada pequena. Estava constantemente a ser advertido para não andar em cima de muros, porque podia tombar. Tinha essa mania. Não era único. Os outros também faziam a mesma coisa. Saltávamos para cima de um, abríamos os braços e caminhávamos em silêncio. Presumo que era a única situação em que os putos não faziam asneiras, não assustavam, não empurravam, não gritavam, não ofendiam, apenas se limitavam a estar atentos a qualquer momento não fosse o diabo tecê-las. 
Naquele mês de agosto li, e depois ouvi, que tinham começado a construir o "muro" em Berlim. Tive que pedir que me explicassem as razões. Explicaram, mas não entendi muito bem. Disseram-me que as famílias iam ficar separadas sem poderem ver-se. Imaginei logo, ali na cozinha, um muro a impedir que visse os meus pais e avós. Fiquei triste e nervoso. As perguntas saíam umas atrás de outras, e eu sem perceber grande coisa sobre o assunto. Só percebia que era um gesto estúpido, mais estúpido do que andar em cima de um muro com o risco de cair e partir um braço ou a cachimónia. Depois, com o tempo, ouvi relatos dos que eram mortos quando queriam saltar o muro. Continuava a não perceber as razões para matar pessoas que queriam passar para o outro lado da cidade. Sentia tristeza, incompreensão e revolta. Fui crescendo e fui percebendo. 
Os muros constroem-se para impedir que as pessoas sejam livres e felizes. Os muros podem ser desfeitos, como foi o outro, mas há quem continue a construí-los para as bandas de Israel, dos Estados Unidos e agora, também na Hungria. Muros da ignomínia a que se juntam muitos outros, muros da religião, muros políticos, muros ideológicos, muros da justiça, muros de preconceitos, muros de todas as formas, feitios e materiais. Os muros são a prova da má consciência humana, ou, então, o verdadeiro espelho da sua natureza. Não me seduzem os muros, prefiro os meus, aqueles onde passeava com os braços abertos, desobedecendo aos conselhos e ordens dos familiares e onde toda a rapaziada se irmanava face ao perigo de cair. Nessa altura não se assustava, não se ofendia, não se empurrava, não se gritava e, em silêncio, todos estávamos atentos para ajudar, não fosse o diabo tecê-las.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fugir

Nossa Senhora da Tosse

Coletânea II