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Mensagens

A mostrar mensagens de dezembro, 2015

Pecados

Acompanho como qualquer cidadão a vida e os comportamentos dos papas e das altas autoridades religiosas. Aprecio o conteúdo dos seus discursos, simples e fáceis de prever. Prédicas que se repetem amiúde. Em grande parte dos casos tentam ajustar-se às novas/velhas realidades sociais invocando o nome de Deus e a sua infinita bondade. Como é que fazem? Habitualmente pedindo perdão por acontecimentos do passado e que, não obstante a passagem do tempo, continuam a manchar as suas missões. Além de pedirem perdão também concedem perdão aos pecadores. Depois, noutros casos, aparentemente complicados para a filosofia que defendem, tentam abrir as portas concedendo alguma "coisa" que, com o tempo, terão de ser aceites. Tem de ser devagarinho para não causar grandes transtornos à organização. No entanto, há um aspeto interessante que merece ser realçado. De quando em vez declara-se um ano "jubileu", e à sua sombra são concedidos perdões aos pecadores. É como colocar o "co

Desconfiar

Causa-me imenso transtorno ver o que se passa em certos setores da nossa sociedade. O caso da banca é paradigmático. Como é possível ter caído numa sucessão de crises em que a falta de respeito e de confiança passaram a ser a sua imagem de marca? A banca é useira e vezeira em convencer muitos depositantes a escolher determinados produtos que "são" muito mais rentáveis do que os tradicionais e "seguros" (?) depósitos. O senhor, de idade, foi ao banco buscar aquilo que julgava ser seu. Não trouxe nada, porque tinha investido em obrigações e outras "coisas" que lhe foram sugeridas pelos funcionários do banco. Disseram-lhe que rendia mais e que de seis em seis meses receberia juros sem problemas; o dinheiro estava seguro. Sorri com tristeza, porque induzir um idoso é muito fácil. Basta colocar gente bem-falante, e devidamente treinada, sempre de gravata ou, no caso de ser uma senhora, saia e blusa bem combinadas, aspeto bem cuidado, e que, por cima, trabalha

"Raspadinhos"

Observo sem surpresa os "investimentos" nos jogos da Santa Casa da Misericórdia. Um balúrdio! Fiquei também a saber que os portugueses começaram a gastar mais na "raspadinha" do que no euromilhões. Ganha-se menos, mas ao menos sabem logo se vão ter prémio ou não. No caso dos prémios pequenos são de imediato gastos em mais raspadinhas. Não sei se não iremos assistir a uma nova patologia, não profissional, mas lúdica, a "tendinite da raspadinha". Chega a ser epidémico e muito preocupante o número de pessoas que, freneticamente, raspam, raspam, para ganhar uns euros que são logo investidos em mais cartões. No final poucos irão obter lucros. Quem ganha é a Santa Casa que lá vai dando um ou outro prémio mais "chorudo" para reforçar a ideia de que consegue fazer feliz alguns portugueses. Não estou certo disso, pelo contrário, despendem as parcas economias e caem no desejo de jogar cada vez mais, viciando-se. É muito fácil ficar dependente de qualquer j

Cinzento

Dominar o cinzento dos dias que deviam ser festivos é lutar contra a força selvagem e dominadora da vida. Não é fácil. Dói. Mesmo que queira socorrer das mais belas cores da imaginária palete, que transposto escondida no fundo da minha alma, ao tocar-lhes consigo transformar os mais quentes, sedutores e inspiradores tons no mais vulgar e ordinário cinzento, capaz de pintar as imagens da tristeza e do medo que me perseguem em certos momentos da vida. Hoje foi um desses dias. Hoje? Não! São vários os dias que me atormentam numa repetição cíclica a querer recordar que tudo gira em volta de um ponto. Tento esquecer, faço por fingir e aguardo ansiosamente o partir da angústia e do medo. Desenho quadros e vivo com intensidade o passado como a querer esconjurar o medo do futuro. Depois o medo adormece. É o momento em que as recordações desenhadas com tristeza surgem com estranha beleza; suaves, coloridas e desejadas sob o novo sentir. Tenho pena de não as ter vivido no momento certo. Pinto a

Imaginar

Correr lugares já conhecidos permite saborear velhos gostos, tempos e momentos. Faço-o com alguma frequência. Cruzo a minha vida com a de outros dos quais apenas reconheço que são portadores da essência da vida. Não sei o que pensam e quem são. Movem-se e olham em redor no momento em que passo. São pessoas obrigadas a viver e a partilhar os seus sentires. Ponho-me a imaginar quem são. Provavelmente o meu pensar não coincide com a realidade. Não importa, ficcionar é a forma mais elegante de construir a realidade desejada e não a esperada. Aprendo muito. Reconheço a minha permanente forma de tentar compreender pequenos gestos, breves acontecimentos e o circular de sentimentos anónimos e ricos em sabedoria perdida como sendo a fonte da água da verdadeira vida. Deslumbrei-me com a velha capela conhecida e consegui ver numa perspetiva diferente o arco da sua torre sineira. Vi a varanda de madeira, a fonte real, os velhos solares, os templos de muitas vidas e de muitas mais lembranças, velh

Incomodar

Aceito as opiniões de quem discorda do que escrevo. Não é difícil. Aceito não por causa dos argumentos, pobres, deficientes, tendenciosos e reveladores de uma incapacidade em compreender as diferentes visões do mundo, mas por serem manifestações naturais de seres vivos presos a preconceitos e convicções. Só não consigo compreender é a razão porque me leem, a não ser porque seja capaz de incomodar. Incomodar não é o mais importante, o que importa é tolerar, respeitar e saber amar.

Paredes velhas

O quadro está à minha frente. Nasceu de uma lembrança, navegou numa mensagem e chegou ao conhecimento do artista. Deve-lhe ter despertado recordações e emoções em rápidas viagens de saudade ao seu passado. Não nasceu apenas das mãos do autor, surgiu da sua memória. Imagino que naquele espaço tenha sentido e vivido o que nunca mais irá sentir, ver, saborear, tocar ou olhar. A luz da manhã entraria pela janela que se fechava para o espaço envolvente enquanto se abria para a sua mente. O sol já apareceu e bateu-lhe como nos outros tempos. As cores sujas das paredes acentuaram-se durante alguns momentos como se estivesse a sorrir. O branco emergiu limpo e o amarelado intensificou-se como se fosse a cor do sol. Até o cinzento-escuro provocado pela humidade e a passagem do tempo adquiriu vida. As paredes velhas a meias com duas figuras humanas testemunham a presença de almas naquele espaço aparentemente perdido e cheio de encanto. Aves sobrevoam. Os quadros não falam mas obrigam a sentir

Migalhas doces

Assusta-me viver. À medida que o tempo rebola no universo sem fim, sinto cada vez mais vontade de saborear pequenas gotas ou migalhas doces de vidas que ainda se desenrolam perante mim. É o que faço diariamente. Encontro, ouço, vejo e sinto que o viver dos outros, seres que nunca vi, encerram em si o segredo da vida. Pequenas frases e olhares subtis explicam mais do que todas as palavras, tratados, poesias ou lições que já li ou estudei. No segredo do anonimato de uma curta conversa ou breve encontro acabo por me encontrar. Ninguém mais sabe. Não importa, outros, como eu, devem sentir o mesmo; o segredo é saber saborear a presença de alguém que sabe partilhar a poesia da vida. Simples, fugaz, profundo, colorido, sentido e tão esquecido. Não há dia que Deus bote ao mundo que não encontre alguém desconhecido que me ajude a viver. Viver assusta. No entanto, as vidas de pessoas anónimas, simples e esquecidas fazem lembrar as inúmeras espécies de flores silvestres que aparecem a qualquer m

Arte

Portugal sofre uma profunda crise. Não é a primeira vez que acontece. Ciclicamente renova a miséria como se fosse o fatal destino traçado por deuses imbecis ou embriagados. Nunca compreendi muito bem a razão de ser de tanta pobreza amancebada com a sua eterna amante, a tristeza. Por vezes enlouquece. São breves momentos em que uma efémera riqueza alucina um povo que passa a sonhar acordado. Depois, o sono da morte obriga-o a ter de sofrer a dor da ausência e a beber os dias cinzentos em que o sol da esperança se ausenta, deixando atrás de si a fome e o amargo desejo de se afogar na violência do tempo e do esquecimento. Vivi todos os tipos de tempos que Portugal já viveu. Todos, ou quase todos, concentrados num curto período de tempo, a minha existência. Cansa? Sim. Desgosta? Sim. Cansa e é fonte de amargura para quem foi ensinado a tentar gostar da vida. Ainda não consegui gostar verdadeiramente. No entanto, por breves instantes, sou capaz de vislumbrar a beleza da vida. Como? Atravé

"Síndrome de Natal"

Os dias que antecedem o Natal criam momentos únicos que importa saber interpretar. Há uma transformação acelerada. No meio da confusão motivada pela festividade surgem casos, recordações e sentimentos intensificados pelos dias falhos de sol e noites iluminadas pelas lareiras, o sol das longas noites. Pediram-me que desse uma pequena olhadela. Nunca me tinham pedido nada parecido, até porque as portas estão sempre abertas e a disponibilidade em atender é uma constante, uma espécie de imagem de marca. Quando tratamos o sofrimento as portas desaparecem. Cruzei-me com a senhora. O seu rosto mostrava algo que não era habitual. Tinha-a visto há poucos dias. Hoje estava diferente, parada e com um sorriso triste. Pensei que estaria ali para tratar qualquer problema, embora sentisse um pequeno estremeção. - Dá-lhe uma olhadela? Disse a enfermeira. Diz que tem um aperto na garganta. - Está bem. Fui ao seu gabinete e fiz-lhe um interrogatório rápido. Deduzi que uma estranha e enigmática ansie

Pinhões

​ ​ O menino não se lembra quando começou a falar. Mas recorda-se de que a palavra Jesus era utilizada com muita frequência. Depressa associou-a ao bem. Gostava de a ouvir, mas gostou ainda mais quando lhe disseram que no dia do seu aniversário dava prendinhas às crianças. Ficou intrigado, então, em vez de receber, dá prendas? Que bom. É mesmo muito bom. Pensou a criancinha. Ele sabia onde morava. A igreja da misericórdia ficava a pouco menos de um minuto a correr. Não estava à vista. Era pequeno, sorridente e rechonchudo. Só saía dali no dia de Natal para ser exposto na base do altar. - Ainda falta muito para o Natal? Perguntava quase todos os dias. - Falta! O que é que tu queres? - Um carro de corda vermelho! - Vamos a ver. É preciso que te portes bem. Ficou desconfiado de que não iria ter a prenda desejada. Os pais diziam-lhe que só fazia asneiras. Mas prometia sempre que iria portar-se bem. Na véspera de Natal, o pinheiro enfeitado à maneira marcava a ocasião causando-lhe gran

Capela

Gosto imenso de escrever, quase que poderia afirmar ser o mais poderoso alimento do meu espírito. Do corpo ainda sei tratar, o problema é alimentar a alma, algo muito complicado e, sobretudo, delicado. Preciso de encontrar a todo o momento fontes de inspiração e minas de prazer. Na maioria das vezes é fácil. Voo sem destino entregando-me nos braços do meu maior inimigo, o tempo. Finjo que não o vejo, mas sinto-o cada vez mais pesado e escuro. Gosto de escrever. Poucos saberão, ou melhor, ninguém sabe que no meio do silêncio de um belo templo consigo parar o tempo e ouvir os sons do passado e de um futuro que desconheço. Quantos textos escrevi no meio de um templo onde consegui parar o tempo? Muitos. Parar o tempo é o mesmo que amar a vida e descobrir o significado do presente, coisa não compreendida e incompreensivelmente fugaz. Hoje, fortes bátegas de água agrediram o meu olhar e o meu sentir. Ao passar em frente da capela que faz parte da Casa dos Arcos vi a porta aberta. Chovia

Konrad Lorentz

Quando comecei a ler Konrad Lorentz, há muitos anos, fiquei fascinado com as suas pesquisas e descobertas. A etologia, ciência do comportamento dos animais, revelou aspetos que podiam, pelo menos em parte, explicar muito do que é o ser humano e o que faz. E faz coisas verdadeiras miseráveis, a ponto de envergonhar qualquer outra espécie. É a única que mata o seu semelhante com uma violência e perversidade que envergonha qualquer outro animal. A agressividade é inata, assim como outras formas básicas de vida, caso dos comportamentos sexual e alimentar entre outros. Ficou para a história a imagem dos patos a segui-lo como se fosse a mãe. Os patos quando nascem seguem o que se mexe no momento. Até faz lembrar certas pessoas da nossa praça que, quando nascem para a política, seguem o chefe como se fosse a "mãe". Mas este é outro fenómeno para ser autopsiado noutra altura! Ganhei gosto pela etologia. Li muito sobre tão importante ciência que ajuda a compreender a nossa natureza

Penar

Não sei se o mundo é estranho. Só sei que as pessoas são fragmentos de um vidro destruído por falta de ideais. O mundo não se vê ao espelho e nunca irá perceber se faz ou não sentido. Olho para os fragmentos da vida e não consigo ver o outro lado da realidade, o mundo belo e escondido atrás de um espelho partido. Nem imaginar consigo, apenas sinto. Ainda sinto. Sentir é a mais estranha forma de penar. Um penar que me obriga a pensar sem achar nada a não ser uma profunda indiferença perante o olhar de um mundo criado pelo verbo amar. Estranho mundo. Não sei se é estranho. Eu é que me sinto cada vez mais estranho e cansado da ilusão de um mundo sem sentido. Consola-me uma curta e inesperada conversa, a oferta de sentimentos e paixões moldadas ou pintadas por velhos corações e o desejo de parar o mundo no tempo em que as ondas do mar adormecem, o ar se esconde e a noite desperta com luminosidade para quem não compreende a vida. O que fazer? Esperar. Sempre é uma forma de orar e espanta

"Povo"

Gosto de um bom livro, aprecio a literatura e esqueço-me do mundo quando me enfronho nas páginas do neorrealismo português. Devorei a obra de Mário Braga até não haver nada mais para ler; embebedo-me com muita facilidade com Aquilino; Ferreira de Castro incentiva-me a explorar muito do desconhecido. Outros, como Miguéis, Alves Redol, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Vergílio Ferreira, só para citar alguns ilustres representantes da cultura portuguesa cheios de arte, magia, vivência e de sentimentos, conseguem descrever muitas realidades que tive oportunidade de ver, sentir, cheirar e chorar. Ao ler uma obra "proibida" de Afonso Ribeiro, "Povo", estremeci de emoção. Os seus contos não são contos, são verdadeiros poemas de dor e pinturas de almas sofredoras. A miséria humana, em todas as suas expressões, é relatada de uma forma única, sensível e amarga, sem esquecer a fome da esperança e a vontade de amar. Ao ler a pobreza em que viviam os nossos antepassados, o

Olhar

O seu olhar é muito curioso, voa disperso através das sombras e foca-nos cheio de vidros coloridos de esperança. Um olhar cuja confissão me perturbou. Olhou e contou-me o que sentia, o que sofria e o que desejava. Deve ter sido a primeira vez que consegui sentir o significado de um templo, onde os sofredores e os desejosos de vida mais amena se abrem para o divino. Senti ser por momentos uma espécie de templo religioso onde a alma se liberta, chora, apela e procura a analgesia doce da vida sem sentido. Estremeci. Fico confuso quando me depositam, sem pedir, o núcleo cristalino escondido nas profundezas das almas. Fico confuso e dorido. São momentos únicos em que se acasalam a vida, a dor e a morte. Registo para sempre o timbre da voz, o brilho do olhar e a esperança sincera de que a vida vale muito seja qual for a circunstância em que navega, circula ou se pavoneia. Um dia, cruzámo-nos no templo aberto e acolhedor de um tempo sem tempo. Gosto do local, talvez seja um dos poucos, para

Presépio

Sombreiam-me lembranças, doces, mornas e cheias de querer e de viver. Escolhi o templo de um dia vulgar no meio de um jardim. As pessoas passam e os pombos espreitam e confiam em desconhecidos. Não lhes ligo. Olham-me de soslaio com segundo sentido. Finjo que não vejo e assim passo despercebido. Em frente, na igreja, vi um presépio bem cuidado. Está tudo no lugar devido. Apenas o local do menino está vazio. Não é ainda nascido! O berço do menino podia ser preenchido. Eu sei que é ainda cedo. Pensei: - Mas quem? Pela menina que nasceu neste dia Vinda das entranhas da vida.

Gente sem vergonha!

Vivo num mundo que não é difícil de compreender. O que me preocupa é a forma como somos tratados, manipulados e gozados. Mas que fazer perante esta forma de enganar o próximo? Nada, ou, então, muito pouco. Não consigo conciliar os valores que a humanidade exige, e merece, com a conduta dos que abusam da credulidade da maioria da população. Revolta-me a forma de ser de muitos que se vendem à custa da propagação de ideias que não se coadunam com os princípios mais básicos da dignidade humana. A televisão é um bom exemplo. Apresentadores, artistas e pessoas, que dão a cara a troco de cinco tostões, são capazes de afirmar que certos produtos e substâncias são o melhor que há para tratar da saúde. Perfeitos negociantes que vendem as suas imagens para publicitar coisas que não têm qualquer razão de ser. Pagam-lhes, e os gajos dizem que aquelas "coisas" são boas para a saúde. Os incautos pobretanas caem que nem uns patos bravos nestas teias de negócio que revoltam as minhas pobres v

Frio

Saí de casa na expectativa de tropeçar numa ideia, encontrar um motivo, ver um pensamento perdido, recordar uma memória esquecida, para poder beber o meu café e escrever ao som do seu sabor indefinido. Apenas o frio me encantou. Simples, seco, sincero e, ao mesmo tempo, amoroso. Frio no corpo desperta calor na alma. Um contraste perfeito ou um acasalar desejado. As recordações regressam de um passado longínquo. Gostam do frio tanto como eu. Encantam e encantam-se ao som da criatividade do momento. Velhas emoções que vivem à custa da liberdade despertada pelo calor da alma numa manhã fria. Tantas imagens, sedutoras, apaziguadoras, sofredoras, mas, no fundo, também libertadoras. Conseguem fazer com que esqueça o futuro.

A poluição

Ao ver um filme/reportagem sobre o ambiente, poluição, aquecimento global, destruição das florestas e cidades "modernas" construídas em redor da exploração do betume e do petróleo, senti um incómodo difícil de entender. Nas entrevistas, pessoas que deveriam ter o mínimo de sentido e de dignidade revelaram mais uma faceta suja da natureza humana. Uma estranha felicidade gira sempre em redor do dinheiro fácil. Bebem, comemoram e jogam com as expectativas de ganhar dinheiro em abundância. Contam, com euforia patética, os valores que ganharam em tão pouco tempo. Um deles, pareceu-me ser um engenheiro, meio alcoolizado, pediu desculpa mas tinha que se assoar. Retira uma nota do bolso - desconheço o valor da mesma -, e enfiou o seu ranho parolo no meio dela. Depois, ostensivamente, deitou-a fora sob olhar complacente e divertido do seu companheiro. Um pequeno episódio a somar a milhares de outros em que os "valores humanos" vêm ao de cima, negro, espesso e altamente energ

Sol que aquece

Descanso um pouco no seio de uma manhã fria. O sol não se mexe, não fala e não aquece. Pinta suavemente as paredes e as tristes plantas, que, na sua eterna mudez, acompanham o desenrolar da manhã sem saber porquê. A vida parece que para. O vento adormeceu. Não há nada. Imagino um estranho silêncio. Não sei o que penso. Queria ir embora, não à procura do sol, nem a toque do vento, nem ao encontro de sons sem sentido, gostava imenso de aproveitar uma fatia do tempo de um dia que para. Onde? Num local em que o tempo dorme e a vida descansa. Saborear o sol que aquece na penumbra de um ser que se esquece.

Castanhas

Olho para as castanhas e esqueço-me de tudo, sobretudo dos seus efeitos nefastos. Tento ter cuidado e preocupação em controlar o que está mal. Ninguém é perfeito, eu também não, sobretudo quando vejo as suas formas e sinto o seu cheiro. Castanhas, a minha perdição. Faço tudo o que me pedem, e aconselham, como se isso fosse necessário, exceto quando as pressinto e antevejo prazer em as comer. Não encontro explicação para tamanha sedução. Recuo até aos primeiros momentos da minha existência quando as via debaixo da caruma à espera de serem assadas, entre as cavacas na lareira da cozinha ou quando ia correr à gare da estação comprá-las, porque via de longe o fumo branco do assador a querer fugir aos abraços das noites frias. O meu olfato detetava-as à distância. Com um moeda de cinco tostões trazia um pacote, feito com uma folha de jornal, cheio de castanhas cujas cascas azuladas enfarruscavam as minhas mãos. Ao chegar a casa já não tinha nem uma, e não era muito longe. A minha vontade

Janela de um olhar

São imensos os quadros naturais que encontro nas minhas deambulações. Qualquer um é suficiente para me inspirar e ver o mundo com outros olhos de ver. É tão simples. Basta estar atento. Não há segredo, nem medo, apenas desejo de ver o mundo de forma diferente. Olhar para o encanto. Provoca uma sensação diferente, em que o prazer se afunda na tranquilidade do ser. O tempo para, a angústia desvanece, a esperança adormece, a dor morre e a paz perdura num breve instante. Olhei para a parede branca, um obstáculo fingido que separa, mas que deixa entreaberta a janela da vida onde o calor, a cor e o belo se misturam como sendo um belo vitral em que a luz penetra sem nunca sair. O resto é puro silêncio em que oiço o roçar de um doce sorriso. Um quadro simples, delicado e em permanente diálogo com quem constrói o mundo através de um simples olhar. O tempo para, a angústia desvanece, a esperança adormece, a dor morre e a paz perdura num breve instante. Basta olhar e sentir a beleza de um qua

Quadro

(Breastfeeding - Dame Ethel Walker, 1867-1951) Gosto de ser empurrado por um impulso inesperado. Momento de indiferença à miséria da vida. Sorrio com prazer porque consigo saborear a beleza da arte. Deve ser uma das poucas coisas que me acalma e estimula a viver no meio da estranha vida. Esqueço-me de tantas coisas, sobretudo de mim. Voo sem destino à procura da delicadeza, daquilo que considero ser o verdadeiro destino do homem, fazer arte e embebedar-se com a sua beleza. É no seu seio que se esconde o significado da vida. O resto pouco ou nada importa. Gosto de entrar em templos religiosos, sejam eles quais forem, não por andar à procura do divino, mas para sentir e absorver a arte e o sentimento da fé de autores desconhecidos que souberam criar espaços e obras cheias de beleza. O monumento à verdadeira divindade exprime-se através da arte. Hoje, senti um estranho impulso, deixei-me levar e esbarrei numa figura feminina rodeada de delicadas flores. Enigmática, sem nome, mas ch

Horizonte

Olhei para o horizonte. Conheço-o bem. Não foge. Horizonte triste no meio da tarde silenciosa. Ouvi soluços estranhos de uma ave. Chorava? Sonhava? Não sei. Piava ou gritava? Não sei. Vi-a no alto do velho sobreiro. Viu-me. Calou-se e voou mostrando uma elegante envergadura. O horizonte só podia ser para um de nós. A imagem encheu-se cheia de cor. No fundo do vale começou a emergir um doce nevoeiro vestido de dor. Guardei o horizonte solitário e imaginei a cor do silêncio. Recordei o triste piar da bela ave e apaguei o amor que o nevoeiro quis esquecer. Um olhar para o mesmo horizonte que desperta sempre o desejo de sonhar. Horizonte quedo e silencioso, seja qual for o dia, haja ou não alegria, dor ou fantasia. Um horizonte não muito diferente dos velhos tempos quando não via.

Água-de-colónia

Acompanho a vida de gente anónima que vive em sofrimento e no mais perfeito esquecimento. Gente que foge de tudo, dos seus países em guerra ou viciados numa perpétua e ignóbil opressão e escravidão, no seu dia-a-dia atormentado pela perseguição e intolerância, num desprezo pelos mais elementares valores sacramentais, aceites e e divulgados pelas diversas religiões, que, na maioria dos casos, endossam a responsabilidade dos acontecimentos para as insondáveis vontades de deuses, quase que me apetecia dizer, prepotentes e arrogantes. Faço parte da humanidade mas não acredito nela. Cedo comecei a desconfiar de tudo o que me rodeava. Assisti a fenómenos de violência. Homens bêbados a espancar as mulheres indiferentes aos choros e gritos dos filhos, lutas entre os guardas e tropas-fandangas em que os tiros se faziam ouvir não muito longe, raivas eivadas de espuma, cenas impróprias e assustadoras para qualquer um, quanto mais para uma criança. Gente miserável cujos sapatos eram uma espessa

Liberdade fingida

Aprecio os olhares. Solitário, passeava pelo paredão que prende as águas da ria. Um olhar que não sorria. Procurava alimento. Sempre atento e pronto a fugir de quem tivesse a mesma ideia sobre si. Comer ou ser comido, um velho dilema que persegue a maioria dos seres vivos. Acompanhei-o durante alguns momentos. Elegante, nervoso, distinto, saltitava sobre as pedras junto à linha de água. De vez em quando movia com rapidez o seu pescoço, pondo-se de imediato atento ao que o cercava. Pois não! Não fosse o diabo tecê-las. Hoje comeu, amanhã pode ser comido. Levantou voo e foi para outras paragens. Eu fiquei. Não tenho asas. Desvio o olhar e vejo humanos. Os seus olhos são diferentes, mostram um pouco de tudo, indiferença, alegria, receio, inquietação, dor, esperança, dúvida, numa mistura caldeada em que um outro sentimento se salienta de forma particular. É hora de descanso. Alguns, sentados, retiram dos sacos alimentos e comem com um olhar tão distante a recordar a pequena ave que por

Sem nome

Atrai-me os momentos em que não tenho nome. São deliciosos, suaves, como discretas gotas cristalinas a embelezar o azul escondido da vida. Penso, imagino, sonho e faço sentir o que há de melhor no existir, não ser visto, não ser desejado, não ser odiado, não ser contemplado, apenas ser olvidado. No silêncio, e na mais doce escuridão, construo o meu mundo de ilusão. Ninguém sabe, ninguém vê, ninguém inveja. Sem nome.

Gaivotas

Manhã sem vida. Gente boçal, Desprendida, Escondida No meio do lodaçal. Afinal, o que é a vida? Nada de especial. Mera luta perdida No afastar do mal. Vejo gaivotas parvas Com o seu estranho olhar. Não pensam. Olham, indiferentes, Para o misterioso mar. Sabem voar, Mas desconhecem O verbo amar. Saberão o que é a liberdade? Não! E saudade? Também não! Se soubessem Morriam de pesar.

"Está mal a um cão"

No recanto do sossego, aguardo a invasão da tranquilidade desejada. Olho para o longo dia e concluo que mereço. Tanta coisa ouvida, dita e construída. Ensinei, aprendi e refleti. O mundo, não o gigante, mas o meu, pequeno, localizado e simples, modificou-se. Não é uma questão de perceção, é a realidade testemunhada por quem conviveu comigo ao longo do dia. Imagino que, a esta hora, alguns conceitos começam a tomar forma e a espalhar-se sob a forma de conversas informais suscetíveis de causar espanto, admiração e provocar reações, as quais, por sua vez, irão alimentar a especulação, a inovação, o conhecimento e o crescimento dos mais jovens e a satisfação dos mais velhos. Olho para o dia que passou e consigo encontrar satisfação. Não é comum, mas hoje, cansado, sinto que é meu dever testemunhar o meu apreço por muitas pessoas que constroem, anonimamente, o mundo. Uma sensação agradável. Tanta coisa dita e construída. Quanto tempo foi necessário para conseguir este desiderato? Olhando be

O acidente

Ando há algum tempo para escrevinhar um pequeno apontamento. Está quase a fazer dois anos que fui atropelado por um ciclista. Quando conto o episódio vejo a surpresa espantada nas faces dos ouvintes, como quem diz, o que é pode fazer uma bicicleta de maior?Pois, o pior é quando o ciclista desce uma rua bastante inclinada a tal velocidade que até o Eddy Merckx ficaria surpreendido. Ele ia distraído e eu tive de contornar o passeio por causa de obras de saneamento. Levei uma valente traulitada. Claro, tive de ir de charola até ao hospital. Vá lá, as coisas não foram muito complicadas, mas, de qualquer modo, fiquei com o ombro em fanicos devido a rotura tendinosa. As dores e a limitação funcional mantiveram-se durante longos meses.  Mais tarde recebi um aviso ameaçador segundo o qual tinha de pagar a taxa moderadora. Fiquei irritado, mas paguei. Passados uns dias surgiu mais uma conta. Desta vez  tinha de pagar a consulta e os exames complementares. Irritei-me a sério. Pagar? Fui atropel