Olhar


O seu olhar é muito curioso, voa disperso através das sombras e foca-nos cheio de vidros coloridos de esperança. Um olhar cuja confissão me perturbou. Olhou e contou-me o que sentia, o que sofria e o que desejava. Deve ter sido a primeira vez que consegui sentir o significado de um templo, onde os sofredores e os desejosos de vida mais amena se abrem para o divino. Senti ser por momentos uma espécie de templo religioso onde a alma se liberta, chora, apela e procura a analgesia doce da vida sem sentido. Estremeci. Fico confuso quando me depositam, sem pedir, o núcleo cristalino escondido nas profundezas das almas. Fico confuso e dorido. São momentos únicos em que se acasalam a vida, a dor e a morte. Registo para sempre o timbre da voz, o brilho do olhar e a esperança sincera de que a vida vale muito seja qual for a circunstância em que navega, circula ou se pavoneia.
Um dia, cruzámo-nos no templo aberto e acolhedor de um tempo sem tempo. Gosto do local, talvez seja um dos poucos, para não dizer o único, em que consigo viajar no tempo parando-o e moldando-o aquilo que devia ser, uma música circular sem princípio e sem fim, um ponto sem nada no seu interior exceto o pobre universo criado pelo arroto de um deus preguiçoso. Não dei conta da sua presença. Olhou e cumprimentou-me num sussurro difícil de traduzir, em que o sorriso se transformou em música celestial e o olhar no Big Bang da nova esperança.
Vejo-a de vez em quando. Falamos com um sorriso. Tudo faz sentido.

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