Avançar para o conteúdo principal

Liberdade fingida

Aprecio os olhares. Solitário, passeava pelo paredão que prende as águas da ria. Um olhar que não sorria. Procurava alimento. Sempre atento e pronto a fugir de quem tivesse a mesma ideia sobre si. Comer ou ser comido, um velho dilema que persegue a maioria dos seres vivos. Acompanhei-o durante alguns momentos. Elegante, nervoso, distinto, saltitava sobre as pedras junto à linha de água. De vez em quando movia com rapidez o seu pescoço, pondo-se de imediato atento ao que o cercava. Pois não! Não fosse o diabo tecê-las. Hoje comeu, amanhã pode ser comido. Levantou voo e foi para outras paragens. Eu fiquei. Não tenho asas.
Desvio o olhar e vejo humanos. Os seus olhos são diferentes, mostram um pouco de tudo, indiferença, alegria, receio, inquietação, dor, esperança, dúvida, numa mistura caldeada em que um outro sentimento se salienta de forma particular. É hora de descanso. Alguns, sentados, retiram dos sacos alimentos e comem com um olhar tão distante a recordar a pequena ave que por ali passou e que fugiu devido à presença de muitas gaivotas com ar ameaçador. Comem, mas também mostram apreensão, porque são frequentemente ameaçados. Também têm os seus predadores, seres da mesma espécie, algo curioso e pouco comum. Muitos, lentamente, vão-se apagando com o esforço violento dos seus corpos. Envelhecem fora do tempo, morrem antes do tempo, não fogem, não têm asas, nem mundo onde consigam respirar liberdade, que, a existir, só a morte consegue fingir.
Liberdade fingida.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fugir

Tenho que fugir à rotina. A que me persegue corrói-me a alma e destrói a vontade de saborear o sol e de me apaixonar pela noite.  Tenho que fugir à vontade de partilhar o que sinto. Não serve para grande coisa, a não ser para avivar as feridas. Tenho que fugir à vontade de contar o que desejava. Não quero incomodar ninguém. Tenho que fugir de mim próprio. Dói ter que viver com o que escrevo.

Nossa Senhora da Tosse

Acabei de almoçar e pensei dar a tradicional volta. Hoje tem de ser mais pequena para compensar a do dia anterior. Destino? Não tracei. O habitual. O melhor destino é quando se anda à deriva falando ao mesmo tempo. Quanto mais interessante for a conversa menos hipótese se tem de desenhar qualquer mapa. Andei por locais mais do que conhecidos e deixei-me embalar por cortadas inesperadas. Para quê? Para esbarrar em coisas desconhecidas. O que é que eu faço com coisas novas e inesperadas? Embebedo-me. Inspiro o ar, a informação, a descoberta, a emoção, tudo o que conseguir ver, ouvir, sentir e especular. Depois fico com interessantes pontos de partida para pensar, falar e criar. Uma espécie de arqueologia ambulatória em que o destino é senhor de tudo, até do meu pensar. Andámos e falámos. Passámos por locais mais do que conhecidos; velhas casas, cada vez mais decrépitas, rochas adormecidas desde o tempo de Adão e Eva, rios enxutos devido à seca e almas vivas espelhadas nos camp...

Guerra da Flandres...

Exmo. Senhor Presidente da Câmara Municipal de Santa Comba Dão. Exmas autoridades. Caros concidadãos e concidadãs. Hoje, Dia de Portugal, vou usar da palavra na dupla qualidade de cidadão e de Presidente da Assembleia Municipal. Palavra. A palavra está associada ao nascer do homem, a palavra vive com o homem, mas a palavra não morre com o homem. A palavra, na sua expressão oral, escrita ou no silêncio do pensamento, representa aquilo que interpreto como sendo a verdadeira essência da alma. A alma existe graças à palavra. A palavra é o seu corpo, é a forma que encontro para lhe dar vida. Hoje, vou utilizá-la para ressuscitar no nosso ideário corpos violentados pela guerra, buscando-os a um passado um pouco longínquo, trazendo-os à nossa presença para que possam conviver connosco, partilhando ideias, valores, dores, sofrimentos e, também, alegrias nunca vividas. Quando somos pequenos vamos lentamente percebendo o sentido das palavras, umas vezes é fácil, mas outr...