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Liberdade fingida

Aprecio os olhares. Solitário, passeava pelo paredão que prende as águas da ria. Um olhar que não sorria. Procurava alimento. Sempre atento e pronto a fugir de quem tivesse a mesma ideia sobre si. Comer ou ser comido, um velho dilema que persegue a maioria dos seres vivos. Acompanhei-o durante alguns momentos. Elegante, nervoso, distinto, saltitava sobre as pedras junto à linha de água. De vez em quando movia com rapidez o seu pescoço, pondo-se de imediato atento ao que o cercava. Pois não! Não fosse o diabo tecê-las. Hoje comeu, amanhã pode ser comido. Levantou voo e foi para outras paragens. Eu fiquei. Não tenho asas.
Desvio o olhar e vejo humanos. Os seus olhos são diferentes, mostram um pouco de tudo, indiferença, alegria, receio, inquietação, dor, esperança, dúvida, numa mistura caldeada em que um outro sentimento se salienta de forma particular. É hora de descanso. Alguns, sentados, retiram dos sacos alimentos e comem com um olhar tão distante a recordar a pequena ave que por ali passou e que fugiu devido à presença de muitas gaivotas com ar ameaçador. Comem, mas também mostram apreensão, porque são frequentemente ameaçados. Também têm os seus predadores, seres da mesma espécie, algo curioso e pouco comum. Muitos, lentamente, vão-se apagando com o esforço violento dos seus corpos. Envelhecem fora do tempo, morrem antes do tempo, não fogem, não têm asas, nem mundo onde consigam respirar liberdade, que, a existir, só a morte consegue fingir.
Liberdade fingida.

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