Avançar para o conteúdo principal

Pinhões




O menino não se lembra quando começou a falar. Mas recorda-se de que a palavra Jesus era utilizada com muita frequência. Depressa associou-a ao bem. Gostava de a ouvir, mas gostou ainda mais quando lhe disseram que no dia do seu aniversário dava prendinhas às crianças. Ficou intrigado, então, em vez de receber, dá prendas? Que bom. É mesmo muito bom. Pensou a criancinha. Ele sabia onde morava. A igreja da misericórdia ficava a pouco menos de um minuto a correr. Não estava à vista. Era pequeno, sorridente e rechonchudo. Só saía dali no dia de Natal para ser exposto na base do altar. - Ainda falta muito para o Natal? Perguntava quase todos os dias. - Falta! O que é que tu queres? - Um carro de corda vermelho! - Vamos a ver. É preciso que te portes bem. Ficou desconfiado de que não iria ter a prenda desejada. Os pais diziam-lhe que só fazia asneiras. Mas prometia sempre que iria portar-se bem. Na véspera de Natal, o pinheiro enfeitado à maneira marcava a ocasião causando-lhe grande ansiedade porque era junto dele que iriam aparecer as prendas. Na altura já falavam do Pai Natal, o "carteiro" do menino Jesus, que era quem fazia as verdadeiras ofertas. Os sons de admiração e os gritos de "já chegou, já chegou" fez com que se levantasse a correr para o ver. Quando chegou à sala não estava. Perguntou: - Onde é que ele está? Onde é que ele está?. - Fugiu pelas escadas. Vai ver se ainda o vês. A única coisa que viu foi uma sombra atrás dos passos de alguém apressado e a porta a fechar-se. - Mas ele entrou por onde? - Pela chaminé. Claro! - E saiu pela porta? - Sim! Ficou meio azamboado com a resposta, mas depressa lhe passou porque viu um carro vermelho a brilhar debaixo da árvore. Ficou feliz. Deu-lhe corda e fartou-se de o ver, ruidoso, a correr pela sala escondendo-se debaixo dos móveis. No dia seguinte foi à igreja. Viu-O sorridente e rechonchudo na base do altar. Não parecia cansado. Estava mesmo com ar feliz. Agradeceu-Lhe. Depois falou com os outros meninos e perguntou-lhes o que tinham recebido. Nenhum recebeu um carro de corda vermelho, apenas saquinhos de pinhões, de figos e de nozes. Um deles pediu se lhe emprestava o carro para brincar um pouco. Foi a casa buscá-lo. Depois do almoço, o amigo, choroso, disse-lhe que a corda se tinha partido. O menino ficou a pensar e respondeu-lhe: - Não faz mal, também anda assim. O outro tirou do bolso um saco de pinhões e deu-lhe. Também tinha sido prenda do Menino Jesus. - E ficas sem ele? - Ele deu-me dois!
Nunca mais comeu pinhões tão saborosos em toda a vida.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fugir

Tenho que fugir à rotina. A que me persegue corrói-me a alma e destrói a vontade de saborear o sol e de me apaixonar pela noite.  Tenho que fugir à vontade de partilhar o que sinto. Não serve para grande coisa, a não ser para avivar as feridas. Tenho que fugir à vontade de contar o que desejava. Não quero incomodar ninguém. Tenho que fugir de mim próprio. Dói ter que viver com o que escrevo.

Nossa Senhora da Tosse

Acabei de almoçar e pensei dar a tradicional volta. Hoje tem de ser mais pequena para compensar a do dia anterior. Destino? Não tracei. O habitual. O melhor destino é quando se anda à deriva falando ao mesmo tempo. Quanto mais interessante for a conversa menos hipótese se tem de desenhar qualquer mapa. Andei por locais mais do que conhecidos e deixei-me embalar por cortadas inesperadas. Para quê? Para esbarrar em coisas desconhecidas. O que é que eu faço com coisas novas e inesperadas? Embebedo-me. Inspiro o ar, a informação, a descoberta, a emoção, tudo o que conseguir ver, ouvir, sentir e especular. Depois fico com interessantes pontos de partida para pensar, falar e criar. Uma espécie de arqueologia ambulatória em que o destino é senhor de tudo, até do meu pensar. Andámos e falámos. Passámos por locais mais do que conhecidos; velhas casas, cada vez mais decrépitas, rochas adormecidas desde o tempo de Adão e Eva, rios enxutos devido à seca e almas vivas espelhadas nos camp...

Guerra da Flandres...

Exmo. Senhor Presidente da Câmara Municipal de Santa Comba Dão. Exmas autoridades. Caros concidadãos e concidadãs. Hoje, Dia de Portugal, vou usar da palavra na dupla qualidade de cidadão e de Presidente da Assembleia Municipal. Palavra. A palavra está associada ao nascer do homem, a palavra vive com o homem, mas a palavra não morre com o homem. A palavra, na sua expressão oral, escrita ou no silêncio do pensamento, representa aquilo que interpreto como sendo a verdadeira essência da alma. A alma existe graças à palavra. A palavra é o seu corpo, é a forma que encontro para lhe dar vida. Hoje, vou utilizá-la para ressuscitar no nosso ideário corpos violentados pela guerra, buscando-os a um passado um pouco longínquo, trazendo-os à nossa presença para que possam conviver connosco, partilhando ideias, valores, dores, sofrimentos e, também, alegrias nunca vividas. Quando somos pequenos vamos lentamente percebendo o sentido das palavras, umas vezes é fácil, mas outr...