Olho para as castanhas e esqueço-me de tudo, sobretudo dos seus efeitos nefastos. Tento ter cuidado e preocupação em controlar o que está mal. Ninguém é perfeito, eu também não, sobretudo quando vejo as suas formas e sinto o seu cheiro. Castanhas, a minha perdição. Faço tudo o que me pedem, e aconselham, como se isso fosse necessário, exceto quando as pressinto e antevejo prazer em as comer. Não encontro explicação para tamanha sedução. Recuo até aos primeiros momentos da minha existência quando as via debaixo da caruma à espera de serem assadas, entre as cavacas na lareira da cozinha ou quando ia correr à gare da estação comprá-las, porque via de longe o fumo branco do assador a querer fugir aos abraços das noites frias. O meu olfato detetava-as à distância. Com um moeda de cinco tostões trazia um pacote, feito com uma folha de jornal, cheio de castanhas cujas cascas azuladas enfarruscavam as minhas mãos. Ao chegar a casa já não tinha nem uma, e não era muito longe. A minha vontade era regressar, e regressava, porque em casa sorriam com a minha mania de comer castanhas a qualquer hora do dia. - Toma mais cinco tostões. Vai lá comprar mais algumas. Tem cuidado que o comboio está a chegar. - Está bem. Corria e empanturrava-me até dizer basta com uma satisfação dos diabos. E os magustos? Nem vale a pena a dizer muito. Tantas histórias em redor de encantadoras fogueiras. Bigodes pintados com o carvão e estômago cheio de castanhas. Sem dar muito nas vistas, ingeria, sempre que podia, uma malguinha de água-pé que vinha mesmo a calhar para matar a sede. Nessas alturas os adultos afrouxavam a vigilância. São Martinho protegia-me, não com a sua capa, mas por permitir que gozasse a liberdade de misturar o calor das fogueiras com o sabor das castanhas e a frescura da bebida dos adultos. Até sentia que flutuava no ar frio das noites de festa. Mas antes, no dia de São Simão, já havia o hábito de as comer. Certas festividades eram levadas muito a sério. Eu agradecia. - Castanhas? Hoje? Mas o dia de São Martinho ainda vem longe! - Pois vem, mas hoje é dia de São Simão e "quem não faz magusto não é bom cristão". Esfregava as mãos de felicidade. Era o início da melhor época do ano. - Eu sou um bom cristão! Dizia todo ufano por saber que ia desfrutar o que mais gostava. Depois, recordo ter questionado: - Antes de Cristo nascer não se comiam castanhas? Olhavam-me com ares de incómodo e respondiam: - Comiam! Sempre se comeram castanhas nesta altura. - Então, porque é que dizem que quem não come castanhas não é bom cristão? - Cala-te, rapaz, ou ainda não comes nem uma. Que mania. Sempre a fazer perguntas. Toma esta, mas tem cuidado porque está muito quente. Punha-a a saltitar de uma mão para a outra ao mesmo tempo que soprava até que arrefecesse o suficiente. Em seguida, tragava-a com sofreguidão. Ficava todo satisfeito. Para mim ser cristão era qualquer coisa diretamente proporcional ao prazer em comer castanhas.
Mesmo com todas as proibições não consigo deixar de as comer nesta altura.
Ser cristão, conceito muito importante, não é mais do que defender e comungar os mais belos princípios que devem reger a humanidade. Cristo não fez mais do que compilar velhas regras que vinham a tomar forma sobre o modo de ser e de estar do ser humano. Antes de aparecer já há muito que existiam, quem sabe se há tanto tempo como as castanhas. Ambas alimentam, são fonte de satisfação e motivo de inspiração.
Em criança, à noite, em redor da lareira, ouvia as conversas em família. Não sei se foi no dia de São Simão. Talvez tenha sido. Assavam castanhas. Interrompi a tertúlia com a seguinte pergunta: - Então, Cristo também gostava de castanhas, não é verdade? Pai, mãe, tias e avós calaram-se momentaneamente, enquanto soprava uma acabada de descascar. Muito saborosa, diga-se em abono da verdade; um sabor diferente acentuado pelo silêncio devido à tirada.
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