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Capela

Gosto imenso de escrever, quase que poderia afirmar ser o mais poderoso alimento do meu espírito. Do corpo ainda sei tratar, o problema é alimentar a alma, algo muito complicado e, sobretudo, delicado. Preciso de encontrar a todo o momento fontes de inspiração e minas de prazer. Na maioria das vezes é fácil. Voo sem destino entregando-me nos braços do meu maior inimigo, o tempo. Finjo que não o vejo, mas sinto-o cada vez mais pesado e escuro.
Gosto de escrever. Poucos saberão, ou melhor, ninguém sabe que no meio do silêncio de um belo templo consigo parar o tempo e ouvir os sons do passado e de um futuro que desconheço. Quantos textos escrevi no meio de um templo onde consegui parar o tempo? Muitos. Parar o tempo é o mesmo que amar a vida e descobrir o significado do presente, coisa não compreendida e incompreensivelmente fugaz.
Hoje, fortes bátegas de água agrediram o meu olhar e o meu sentir. Ao passar em frente da capela que faz parte da Casa dos Arcos vi a porta aberta. Chovia que Deus a dava. O meu coração acelerou em resposta a uma ansiedade que coincide precisamente com os anos que tenho de vida. Nunca tinha visto o seu interior. Sempre a desejei ver, mas nunca consegui. No entanto, por ali passei vezes sem conta. Faz parte do meu imaginário, da minha infância, adolescência, faz parte de mim, mas nunca penetrei no seu interior. Se tentei? Sim. Tive sempre a esperança de que um dia iria conhecer o seu interior. Quando? Talvez quando o tempo estivesse distraído e cheio de sono. Foi hoje. A chuva não me perturbou. O tempo não acordou. Corri ansioso e penetrei no seu ventre. Nunca pensei ver o que vi. Algo de extraordinário. Um altar delicioso, esculturas que desconhecia, um teto sumptuoso que me cortou a respiração e um baixo-relevo em madeira na parte frontal que nunca vi representado em mais nenhum lugar. O Santo António sorriu e eu também.
Queria agradecer a quem teve a ideia de colocar o presépio naquele espaço. No entanto, para mim, o facto de tão bela capela estar aberta representa uma forma de abrir Santa Comba Dão à vida. As portas têm muito significado. Esta também tem. Proponho que este espaço fique permanentemente aberto. É uma forma elegante e simbólica de abrir a sala de estar de uma localidade. Assim, qualquer um pode apreciar a arte, precisamente num local onde a beleza do sagrado e a tranquilidade da alma podem parar o tempo. Pelo menos eu consigo. E bem preciso.


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