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Quadro

(Breastfeeding - Dame Ethel Walker, 1867-1951)

Gosto de ser empurrado por um impulso inesperado. Momento de indiferença à miséria da vida. Sorrio com prazer porque consigo saborear a beleza da arte. Deve ser uma das poucas coisas que me acalma e estimula a viver no meio da estranha vida. Esqueço-me de tantas coisas, sobretudo de mim. Voo sem destino à procura da delicadeza, daquilo que considero ser o verdadeiro destino do homem, fazer arte e embebedar-se com a sua beleza. É no seu seio que se esconde o significado da vida. O resto pouco ou nada importa. Gosto de entrar em templos religiosos, sejam eles quais forem, não por andar à procura do divino, mas para sentir e absorver a arte e o sentimento da fé de autores desconhecidos que souberam criar espaços e obras cheias de beleza. O monumento à verdadeira divindade exprime-se através da arte.
Hoje, senti um estranho impulso, deixei-me levar e esbarrei numa figura feminina rodeada de delicadas flores. Enigmática, sem nome, mas cheia de encanto. Sedutora. Não sei quem foi, mas, tenha ou não existido, revela um profundo sentido, o encanto do odor das flores que a rodeiam. Vida cheia de cor, de odor e de amor. Bela, pois então. Onde é que a beleza pode encontrar a sua verdadeira representação? Na imagem de uma mulher. Consegui. Fiquei com ela. E depois? Depois, deixei-me ir atrás de outro impulso, a beleza do futuro da vida. Uma mulher a amamentar. Fiquei apaixonado. Não é muito difícil. Já vi inúmeras vezes quadros ou representações de mulheres a amamentar, mas este era diferente. Vejo a criança, vislumbro o seio da mãe, sinto o prazer de ambos e a verdadeira tranquilidade do que deveria ser a vida, uma comunhão de paz e de amor. Bela representação. A autora desapareceu no ano em que nasci. Pensei, fomos contemporâneos, e eu bem podia estar ali. Não consigo descortinar as feições da criança. Ainda bem. Podia ser eu? Sim, porque não? Quase que consegui sentir o momento do início do viver. Quadro misterioso e delicado. Quis ficar com ele. Não foi fácil. Consegui no último segundo. Fiquei tranquilo e muito feliz. Vou olhá-lo sempre que tiver necessidade e imaginar o que senti sem me lembrar do que vivi, paz, sossego, calor e muito amor a brotar em mornas e suaves ondas vindas da mais bela fonte da vida.

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