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O acidente

Ando há algum tempo para escrevinhar um pequeno apontamento. Está quase a fazer dois anos que fui atropelado por um ciclista. Quando conto o episódio vejo a surpresa espantada nas faces dos ouvintes, como quem diz, o que é pode fazer uma bicicleta de maior?Pois, o pior é quando o ciclista desce uma rua bastante inclinada a tal velocidade que até o Eddy Merckx ficaria surpreendido. Ele ia distraído e eu tive de contornar o passeio por causa de obras de saneamento. Levei uma valente traulitada. Claro, tive de ir de charola até ao hospital. Vá lá, as coisas não foram muito complicadas, mas, de qualquer modo, fiquei com o ombro em fanicos devido a rotura tendinosa. As dores e a limitação funcional mantiveram-se durante longos meses.
 Mais tarde recebi um aviso ameaçador segundo o qual tinha de pagar a taxa moderadora. Fiquei irritado, mas paguei. Passados uns dias surgiu mais uma conta. Desta vez  tinha de pagar a consulta e os exames complementares. Irritei-me a sério. Pagar? Fui atropelado e agora tenho de pagar? Pedi ao advogado instruções sobre como resolver o assunto. Acabou tudo no tribunal. Nem vale a pena contar o sucedido. Se soubesse nunca teria aceitado tal solução. Os ciclistas não são obrigados a ter seguro e o tal fundo de garantia automóvel, segundo a lei, não é obrigado a indemnizar o que quer que seja, quando o ato é provocado por tão ilustres utilizadores das vias públicas, passeios, passadeiras e outras coisas mais!
No dia marcado fui a julgamento.Tanta gente, pensei. O meu advogado, o do réu, o do hospital e o do fundo de garantia automóvel. Uma manhã mal passada. Fiquei com a sensação de que não seria indemnizado, nem que fosse simbolicamente, tudo porque não quis pagar uma conta que achava ser injusta.  O que é que vi no tribunal? Prosápia, arrogância, silêncios preconceituosos, teatralidade jurídica, enfim, algo para o qual não estava minimamente preparado. No final acabei por sair prejudicado. Feitas as contas, mais valia ter pagado a conta do hospital.
Como fiquei incomodado, pensei que deveria ter uma conversa com o meu avô, que faleceu há quarenta e cinco anos.
O meu avô ensinou-me coisas muito importantes. Uma delas diz respeito à justiça. Quando era pequeno passávamos muitas vezes em frente do Tribunal Velho. Afirmava que era naquela casa que um homem honrado sentia o verdadeiro significado do respeito. Explicou-me que ali, tribunal, as pessoas que se sentissem injustiçadas encontrariam a reparação adequada, enquanto os maus apanhavam castigos. Para mim o juiz passou a ser a pessoa mais importante da terra. Nem o médico, nem o padre, nem o professor, nem o chefe da estação, nem os guardas chegavam ao calcanhar daquele homem. Não tinha medo e gostava de o ver. Parecia-me diferente de todos os outros. Afinal, havia alguém que nos protegia, e eu conhecia-o. Se houvesse algum problema o juiz resolvia-o. Até cheguei a pensar em dizer-lhe que andava muito aborrecido, porque já me tinham roubado mais do que uma vez os meus queridos piões. Mas havia sempre um familiar que me comprava um novo. Mas não era a mesma coisa, porque não tinha ainda uso e sem uso é diferente.
Recordo-me, frequentemente, deste episódio. Agora, perante esta situação, a primeira vez que me queixei, e fiz uso da justiça em causa própria, das outras vezes vou como testemunha e/ou perito, fiquei desiludido. O juiz fez o seu papel, mas não correspondeu ao esperado e ao perfil que fiz desde muito novo quanto a tamanha "personalidade".
Se o meu avô ouvisse a história o que é que iria dizer? Calava-se durante uns longos segundos, tirava o chapéu, coçava a careca, voltava a colocá-lo, via se o bigode estilo Charlot meio rarefeito ainda estava no sítio, e arrematava: - Olha lá, não pagaste a conta do hospital, pois não? - Não. Então, conseguiste o que querias. - Sim! Mas ficou-me muito mais caro! - Foi caro, mas foi com asseio! E a conversa ficaria por aqui.
De qualquer forma, sinto saudades do Senhor Doutor Juiz dos meus tempos de criança. Agora, quando muda o tempo, o sacana do ombro dá sinal de si. Se fosse só a dor ainda era o menos, o pior é que vejo, também, a cara do jovem juiz. Caramba, dois males é demais!

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