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São Mateus

Entrou com um sorriso estampado na cara, balançando o corpo pesado mas ágil. Voz timbrada pelo trabalho duro. Umas boas-tardes sonoras, enrouquecida pela exposição permanente ao ar, foi um bom preludio para a poder provocá-la, certo de que iria desfrutar bons momentos de conversa.
Está mau tempo!
Pois está. Venho toda molhada, mas que fazer? "Não peças a morte a Deus nem chuva pelo São Mateus"
Como?! Interroguei-a de pronto. Repetiu o provérbio, mostrando a tal sabedoria popular que tanto aprecio. Sorri e vi que a minha percepção estava a bater certo.
Gostou do provérbio, senhor doutor?
Gostei, claro. Afinal estamos perto de comemorar o São Mateus. Sei que é por estes dias, mas já não sei qual a data.
Vinte e um de setembro.
Pois. Tem razão. Coincide com o equinócio do Outono.
Equi? O que é que disse?
Equinócio. Depois dei algumas explicações sobre o tema e recordei que nesta altura é muito comum aparecer as chuvas. Recordei a Santa Eufémia, comemorada a dezasseis de setembro, muito ligada à abertura das portas ao inverno, ao facto da Nossa Senhora da Natividade também gostar de chuva, exceto durante os momentos da procissão em seu favor, e agora veio à liça o São Mateus. Ou seja, sempre que há um santo a comemorar nesta altura do ano vai ser sempre conotado com a invernia e as chuvas. Que outra coisa seria de esperar? Sorri e lembrei-me de perguntar de onde era. Disse-me que pertencia ao concelho de Soure, onde o São Mateus tem honras de festividade assim como em outras localidades. A conversa continuou a girar em redor do provérbio. A senhora explicou que não vale a pena pedir a morte a Deus, porque é mais do que certa, e se pedirmos chuva a São Mateus é também uma coisa certa.
Gosto imenso de conversar com o "povo". Uma delícia. A sua sabedoria era evidente, mas também mostrava sinais de ser ignorante. A mulher que estava à minha frente conseguia a proeza de acasalar a sabedoria com a maior da ignorância.
Olhei para as análises e perguntei:
A senhora sofre de diabetes!
Pois sofro.
Mas os resultados estão tão maus, meu Deus. Nem quero acreditar. De facto, apresentava valores muito preocupantes.
Eu não tenho cuidado nenhum. Como tudo o que vier e me apetecer. Fiquei surpreendido com a resposta e aprofundei a situação. Objetivamente, estava perante uma situação que augurava um mau destino. Fiquei preocupado e tive que dispensar o meu tempo para "evangelizar" a minha herética, coisa que não seria nada fácil de alcançar. Ainda por cima não tenho qualquer atributo típico do São Mateus. Com muita calma, expliquei-lhe as consequências e o seu futuro. Repeti, fiz analogias, usei metáforas, até cheguei a utilizar as duas "certezas" do provérbio com que me prendou à entrada. Disse-lhe que as duas "certezas" do provérbio não eram superiores à minha profecia, o apodrecimento progressivo do corpo e a morte lenta cheia de sofrimento que iria ter. Olhava-me com alguma surpresa, sempre que lhe explicava os pormenores. Toquei-lhe no sofrimento que iria causar aos seus, os quais teriam de cuidar com a situação. O tom foi um pouco tétrico, mas a mulher começou a vacilar e a compreender a situação. Tive que lhe dizer que a minha "profecia" era muito mais forte do que o provérbio. O que eu queria era que nunca recordasse a minha pessoa, porque seria sinal de que estaria compensada e não sofreria as complicações que estava a descrever. Olhava-me cada vez com mais atenção. A sua arrogância natural ia-se esbatendo progressivamente. Deixei-a falar. Vi que tinha compreendido a minha charla e prometeu que iria mudar os seus hábitos, conduta e seguir os meus conselhos, consultando o seu médico assistente.
Saiu. Ao sair prometeu que iria agradecer ao São Mateus a ajuda que lhe dei. A forma sincera e profunda como disse convenceu-me. Talvez, quem sabe, se a chuva de hoje e o aproximar do dia de São Mateus não tenham feito mais pela mulher do povo do que eu.
- Quem sabe?

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