O morro

A fotografia apareceu sem dar conta. Um morro suave, uma árvore cheia de fé e uma capela a olhar para o velho caminho orlado de ervas secas e douradas, pintavam um belo quadro numa tarde perdida do tempo. A pequena capela, ao refugiar-se em silêncio sob a sombra da única árvore, dominava o espaço sagrado com a humildade moldada ao longo dos séculos. 
Nasci e vivi perto do morro. No, então, denominado "cimo de vila". Comecei a ouvir falar do santo desde muito pequeno. Diziam-me para não ir para o morro, porque do outro lado a encosta era quase a pique e cheia de pedras. Fingia que ouvia, mas sempre que podia fugia até àquele local. O que mais me impressionava era a capela, pequena demais para um santo que também tinha de ser minúsculo. Dava uma ou duas voltas e depois aproximava-me da outra encosta para ver se conseguia apanhar uma boa mimosa de base curva a imitar um "stick" de hóquei. Na altura gostava de jogar ao hóquei, neste caso, versão hóquei em campo, com uma bola feita de trapos devidamente molhada. Ficava dura e apta para o desafio a realizar no chão de terra batida para as bandas do Rossio. Era preciso força e destreza. Quem apanhasse com a bola era obrigado a dizer um "ai" acompanhado de um valente palavrão. Doía que se fartava, descontando alguma mocada com o pau, porque não existiam regras de jogo, a não ser enfiar a bola na baliza definida com duas pedras. Corria entre a miudagem que as melhores mimosas estavam daquele lado do morro. O problema era o risco de cair. Os avisos eram uma constante, e as tropelias também. De qualquer modo, nunca houve problemas. Não sei se o santo teve ou não alguma influência. Também não sabia quais os milagres que fazia. Gostava imenso de ir até ao morro para brincar. Imaginava castelos, florestas, e fazia lutas com arcos e flechas feitas de mimosas. O Santo Estevão não tinha sossego. Presumo que apreciaria a algazarra dos miúdos. Estar enfiado numa capela minúscula deveria ser uma grande seca. Tanto mais que só apanhava sol, tal como os restantes santos de várias capelas, no dia da Nossa Senhora da Assunção. Pouco, mesmo para um santo. Eles também precisam de apanhar ar e algum sol.
Recordo que um dia deixaram-me ir até ao morro sem qualquer advertência. Havia missa campal. A porta da capela abriu-se e o santo, indolentemente, espreguiçou-se e bebeu um pouco de sol. Antes de ir para a cerimónia, num dia cheio de sol e ligeira brisa, apressei-me a dizer: - Com que então, hoje, já posso ir ao Santo Estevão! - Podes! Porque é que não podias? -  Ah! Neste caso já não caio e não esfolo os joelhos, pois não? Senti que a pergunta não foi bem escolhida, porque logo a seguir ouvi com algum espanto: - Vais esfolar o quê?! Os joelhos?! A conversa terminou e nem dei azo a contestar o que quer que fosse. Corri para o morro seco e dourado. Durante a cerimónia não me ajoelhei, não fosse esfolar a pele naquelas pedras perdidas do monte sagrado. As pedras são duras e ferem qualquer um, que diga o Santo Estevão que foi apedrejado até à morte e que eu o diga com as pedradas que já levei ao longo da vida. Mas que eu gosto do santo, gosto, o primeiro de todos os santos. 
Um dia destes vou até ao morro sagrado. 

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