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Sociedade cadavérica


Todos os dias vivo uma ou mais histórias. Gosto de as registar. Gravo-as na memória e, sobretudo, no coração. Ajudam-me a compreender o mundo e a suavizar a vida. Partilho o meu sentir com os anseios de outros numa perfeita e anónima harmonia.
A senhora entrou com um semblante nervoso, quase que diria desesperada. Sorri. Não disse nada. Esperei que me contasse o que a atormentava. Trabalha numa instituição que presta cuidados a idosos e doentes. Possui uma longa experiência nesta área. - Oh senhor doutor, peço-lhe desculpa, mas estou muito nervosa com o que me aconteceu hoje. Nunca vi nada semelhante. - Mas o que é que aconteceu? Perguntei. - Antes de vir para aqui, tivemos, eu e uma colega, de ir cuidar de uma utente, como habitualmente fazemos. Levar a comida, lavá-la, cuidar como é nosso dever. O senhor sabe muito bem o que fazemos. Um senhor, que vive num apartamento do prédio, no de cima, veio bater à porta, pedindo para irmos ver a mulher que estava a morrer. Como deve ver que vamos todos os dias a casa desta senhora, deverá ter pensado que éramos enfermeiras. Não somos, claro. Subimos ao apartamento e deparámo-nos com algo difícil de descrever. Uma imundície. Quanto ao cheiro nem lhe digo nada. Ao entrar no quarto vimos uma senhora desnudada, com uma perna fletida e a outra esticada. O pescoço estava hirto e estendido. A sujidade era tanta que nem sei como a descrever. Muito sangue numa das pernas e sinais de cicatrizes no corpo. Feridas esverdeadas. Fezes por toda a cama. E o aspecto? Viam-se os ossos a quererem romper a pele. Tive tanto medo. Fiquei com a sensação de que se lhe tocasse os ossos furavam-lhe a pele. O colchão estava cheio de urina. Ao tocar no colchão, a urina, escura de muitos dias, começou a sair como se estivesse a sair de uma esponja. Fiquei desorientada. Não sabia o que fazer. O senhor doutor já viu aquelas imagens das modelos anoréticas? Pois, olhe. Era muito pior. Muito pior. Deixei que continuasse a relatar o sucedido. Tremia, a voz embargava-se e as mãos não encontravam maneira de se esconderem. - Telefonei para o 112. Depois contou a história desse telefonema; passo em frente para não fazer quaisquer juízos de valor. - Antes de chegarem falei com o marido. Tem oitenta e quatro anos e é o cuidador da mulher com oitenta e seis anos. Cuidador? Também já não deve estar bom da cabeça. Digo isto pela forma como contava o comportamento da mulher. Tem dois filhos. Uma filha que está institucionalizada por ser deficiente mental e um filho que está no Estados Unidos. Às tantas já nem sabe se tem pais ou não. As lágrimas da senhora começaram a cair. Muito nervosa, pedia-me desculpa por estar a contar o sucedido, e eu, no meu silêncio, ia deixando que despejasse as dores da sua alma. Sempre a acalmava. - Antes que os bombeiros viessem fui à vizinha de baixo buscar uma fralda e lavei-a para que pudesse ir com o mínimo de dignidade. Mas tive tanto medo de a rasgar. Nunca vi nada semelhante na minha vida, senhor doutor. Diga-me, como é possível uma coisa destas num prédio com vários apartamentos no meio de uma cidade. Como é possível? Onde está a assistência social? Como é que nunca deram conta desta situação? Como é possível chegar a este ponto? As interrogações sucederam-se numa velocidade perfeitamente alucinante. Depois, falei, comentei e fiz o que pude para a ajudar. Vi que ficou mais calma, e eu, em contrapartida, absorvi o seu descontentamento, raiva, incompreensão e dor. A descrição que fez do quadro foi de tal modo violenta que consegui ver tudo com uma precisão como se estivesse igualmente presente.
A sociedade está, como todos sabemos, a envelhecer. A sociedade do interior do país está a desertificar-se. Mas pior do que isto tudo é o facto de a sociedade estar a "cadaverizar-se".
O peso e a angústia da senhora contagiaram-me sobremaneira. Como não consigo libertar-me da história, só me resta contá-la.
Recordo as últimas palavras da senhora: - Quantas pessoas deverão estar nesta situação?
Não respondi. Não disse nada. Fiquei a pensar em muita coisa...

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