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Noite de sábado

Noite de sábado. Tanta coisa por fazer, mas a inércia da vida leva-me a esquecer os deveres, obrigando-me a pensar. Os rasgos do pensamento começam a desenhar-se no silêncio de uma noite que acabará por ser esquecida. As ideias amontoam-se, não querem respeitar a ordem de chegada, atropelam-se como na fila de qualquer repartição pública, onde o desejo de expulsar e de resolver o assunto é a única forma de apaziguamento. Também as almas, atormentadas por tantos acontecimentos e desvarios sem sentido, procuram gritar e desabafar para poderem encontrar a paz da vida, como se tivesse alguma importância ou sentido. Não tem. É apenas uma forma de justificar o dia-a-dia. Não sei a quem devo dar prioridade. Olho para cima e vejo a beleza de uma escultura, doce, elegante, branca, cheia de sentido a querer oferecer-me algo. Olho-a e lembro quando a adquiri. O sorriso do menino aliado ao orgulho suave da mãe transborda de alegria e irradia raios de fantasia. Tão frágil e ao mesmo tempo elegante. Toco-lhe. Gosto de saborear os objetos com as mãos. Os dedos percorrem a figura, transformando os toques em sensações capazes de recriar o mundo e saborear estranhas emoções. A janela aberta ao fundo da sala começa a deixa entrar a suavidade fresca da brisa da noite. É a sua hora de entrar em cena. Não a perturbo. Aceito-a com naturalidade, embora me obrigue a desejar que feche a janela. O corpo reconhece a brisa como sendo uma forma pura e honesta que a noite oferece para criar condições que permitem despertar lembranças e sonhar com aspirações. A noite tem esse condão, transforma o calor da beleza de uma peça de arte, dando-lhe vida e significado como se fosse um momento especial da criação. São momentos singulares, belos, desejados, esperados, que ocorrem quando os sábados começam a despedir-se nas suas noites, únicas, belas, tranquilas, capazes de ressuscitar esperanças e dar algum significado à vida. Convida, no seu peculiar silêncio e beleza da imagem do sol oferecido durante o dia, a sonhar, a descansar, a esquecer, a criar, a orar, a pensar e a acreditar. Acreditar? Mas em quê? Em tudo que justifique o prazer e a paz momentânea, seja num sonho esquecido, seja numa mentira forjada, seja numa mera ilusão desesperada. O que interessa é agarrar esse momento, tão ou mais fugaz do que a passagem alegre de uma estrela cadente. Apanhar esse momento é raro, é como se fosse capaz de moldar a brisa da noite e dar-lhe a configuração da bela, suave e frágil escultura que me observa neste momento em cima da minha escrivaninha. Será que é filha da brisa de uma noite de sábado? Porque não? É tão delicada, transmite paz, sinceridade, verdade e esperança. Que pena tenho em não saber moldar algo semelhante com a brisa silenciosa de uma noite de sábado.


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