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Procurar

Nossa Senhora do Pranto

Procurar é uma forma de estar e de acalmar a vida. Quando descubro o que não espero sinto uma varredura fresca na minha cabeça. Uma sensação única que ajuda a compreender e a ver outros mundos que baloiçam em círculos loucos e quase invisíveis.
Nesta altura do ano somam-se as romarias e festividades religiosas. No círculo onde cresci, julgo não haver nenhuma que me tenha escapado. Nem podia. A vida fazia-se em função das festividades religiosas. Um bom pretexto para o importante acessório, a festa pagã, mais interessante, ruidosa, cheia de alegria, de comida, de bebida e de música popular. Ia-se à procissão ou à missa, mas o que interessava era o que vinha a seguir. Um pequeno sacrifício silencioso que antecedia a desejada algazarra dos romeiros esfomeados e sedentos de vinho. Havia as bancas onde se vendia de tudo. Na mais perfeita desorganização misturavam-se tendeiros e taberneiros, cujas carroças, cheias de pipos de vinho e de comida, atraíam com mais facilidade os romeiros do que as mulas as moscas. A meio da tarde a filarmónica tocava para os presentes. Não importava se tocassem afinados ou não. Àquela hora, um ou outro músico já trocava as notas. Os sons dos metais e dos bombos casavam perfeitamente com a subida do vinho à cabeça. Os estômagos, cheios de presunto, frango, bacalhau, pastéis, boroa, bolos, tudo aquilo que o povo considera o mais adequado para encher a mula, obrigavam os romeiros a descansar em cima de mantas sob as deliciosas sombras das árvores. Eu vadiava entre aquela multidão. Os convites e as trocas de comida eram uma constante. Eu também beneficiava desses gestos, se bem que não passava de um pisco a comer. O que eu queria ver era a loucura da multidão, os brinquedos de lata ou de madeira, os barros, os bolos cheios de pó, a salsaparrilha ou o capilé feitos na altura e os medalhões ovais de açúcar que tinham a imagem do santo ou da santa em papel colada a uma das faces. Presumo que era a imagem que me seduzia, porque o medalhão era muito enjoativo. Comprava sempre um, até tinha um atilho para colocar ao pescoço.
Hoje fui à Senhora da Ribeira. Antigamente era uma romaria muito concorrida. A capela teve de ser transferida em tempos por causa da albufeira. Não está muito longe do local onde nasceu. Gosto de ir neste dia, porque só assim consigo entrar no templo e apreciar as belas imagens, sobretudo a de Nossa Senhora do Pranto. Cá fora havia algum movimento. Era hora de comer. A procissão do retorno já tinha terminado assim como a missa. As pessoas espalharam-se pelo bosque, sentadas em cadeiras. Pouca gente. Ouvia-se músicas bastante brejeiras que uma potente instalação sonora debitava por todo o espaço. Sorri. O que vale é que os santos são surdos e os poucos romeiros espalhados em redor estavam mais interessados em encher a mula. Pouca gente. Vi apenas três tendeiros, um de fruta, outro de roupa e o terceiro com material “eletrónico”. Às moscas! Há dias verifiquei o mesmo fenómeno noutro local. De ano para ano veem-se sinais inequívocos de um abandono progressivo das romarias e festividades religiosas.
O mundo transforma-se. Por vezes com muita velocidade. Ficam as recordações. Vou atrás delas à procura de muitas coisas. Sei que, mesmo assim, desaparecerei primeiro.

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