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Esquecimento


O mundo não gira, o sol não anda, o que gira são as tragédias, traições, humilhações, mortes, desprezo, escravidão e charlatanice de todo o tipo, desde a ligada à saúde, passando pelos oráculos que falam em nomes de deuses escondidos, até à mais comum, a política.
Fingir é a faceta mais ordinária da vida, mas, ao contrário da que é representada nos palcos, praticamente inofensiva, serve apenas para divertimento e enriquecimento cultural de quem vê e representa, o fingimento real é diferente, é duro e faz doer. Por mais voltas que os seres humanos deem acaba sempre por voltar tudo ao mesmo.
A violência humana é intrínseca e não há nada que a possa travar ou matar. Até as religiões, que deveriam ser fonte de satisfação e de formação, deixam muito a desejar, inclusive conseguem ser, paradoxalmente, fonte de sofrimento, de dor e de morte. A não aplicação dos princípios apresentados como desígnios de Deus, um ser que joga de forma esquisita através de múltiplas religiões, algo que nunca compreendi bem, permite que o homem seja imune à mudança no sentido de erradicar a sua violência visceral e desejo de superioridade face a tudo e a todos. Consegue, com muita dificuldade, e outra tanta precariedade, algum equilíbrio momentâneo. Muito fugaz. Depois volta tudo ao mesmo, manifestando, invariavelmente, o tal toque de "humanidade" com que fomos criados, inventados ou paridos de um ventre universal não muito diferente do que ocorre com as outras espécies. As diferenças entre a nossa espécie e as outras assentam na complexidade e na variabilidade dos múltiplos acontecimentos.
 No fundo, podemos ficar emocionados, indignados, ofendidos, perdidos ou desolados com os múltiplos e horríveis acontecimentos que nos rodeiam, mas é apenas uma mera questão de tempo. Esquecemos rapidamente o que fazemos e o que acontece por esse mundo fora. Será que este esquecimento é uma forma de evitar o sofrimento e evitar a realidade? Talvez. Seria bom que recordássemos com mais acuidade e frequência tudo aquilo que o homem faz e fez até hoje, em todos as civilizações e em todos os períodos da história humana, sempre ajudava a evitar a trágica vida de muitos seres devido ao comportamento dos seus semelhantes.
Os seres humanos, de um modo geral, "esquecem-se" ao fim "três dias". Estamos no segundo dia. Depois de amanhã poucos irão lembrar-se da tragédia. Somos mesmo assim, esquecemo-nos de tudo, de nós e dos outros.

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