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"Desconhecido"




Não quis adquiri-lo há alguns meses. Não sei qual foi a razão, talvez por não querer sofrer mais uma deceção, porque há sempre alguém que se antecipa ou pague um valor difícil de igualar. Confesso que na primeira que o vi seduziu-me a expressão. Um quadro impressionista da primeira metade do século passado. Nunca foi assinado. Também não é a assinatura que me preocupa. A face do homem desconhecido, desenhado por um desconhecido, num local desconhecido, é mais do que suficiente para me atrair. Mas há mais, o rosto desenha um estado de espírito em que se misturam a tranquilidade, a tristeza, a deceção da vida, a honestidade, o canto do sentir de uma alma ofendida, a vontade de perdoar e o desejo do esquecimento que o porvir lhe irá oferecer. O tempo para conhecer a eternidade já deve ter chegado, e há muito. Depois desapareceu, mas há dias voltou a aparecer. Deve ter sido visto por milhares de pessoas. Voltei a vê-lo, e quis, novamente, adquiri-lo. Achei estranho esta coincidência e avancei. Comprei-o. Desta vez estava à venda por um preço mais que acessível. Achei estranho. Ninguém o comprou. Olhei-o vezes sem conta. O verde, o branco, o negro, os olhos que não vejo e a suavidade de um homem desconhecido fizeram-me tremer. É pequeno, mas grande em beleza e em significado. Mais uma vez fiquei apaixonado. Aguardo a sua vinda. Não sei onde vou colocá-lo. Apesar de tudo não vai ser difícil, porque é pequeno, enigmático, sedutor e suficientemente belo para me ajudar a pensar. Coisas que preciso para poder sobreviver. Curioso, não tem assinatura e não tem nome. Tenho que o retirar do nimbo do desconhecido, para isso tenho que lhe encontrar uma designação com sentido. Como hei de o chamar? Já sei, "Desconhecido". Nada melhor do que ser irmão de alguém desconhecido que sabe interpretar a vida com sentido.

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