Água-de-colónia



Acompanho a vida de gente anónima que vive em sofrimento e no mais perfeito esquecimento. Gente que foge de tudo, dos seus países em guerra ou viciados numa perpétua e ignóbil opressão e escravidão, no seu dia-a-dia atormentado pela perseguição e intolerância, num desprezo pelos mais elementares valores sacramentais, aceites e e divulgados pelas diversas religiões, que, na maioria dos casos, endossam a responsabilidade dos acontecimentos para as insondáveis vontades de deuses, quase que me apetecia dizer, prepotentes e arrogantes.
Faço parte da humanidade mas não acredito nela. Cedo comecei a desconfiar de tudo o que me rodeava. Assisti a fenómenos de violência. Homens bêbados a espancar as mulheres indiferentes aos choros e gritos dos filhos, lutas entre os guardas e tropas-fandangas em que os tiros se faziam ouvir não muito longe, raivas eivadas de espuma, cenas impróprias e assustadoras para qualquer um, quanto mais para uma criança. Gente miserável cujos sapatos eram uma espessa camada a lembrar os cascos dos animais. A fome batia à porta a qualquer momento, tremiam de fome e de frio, doentes, desesperados e banidos do mundo como aquele casal de leprosos que um dia foram caçados como animais. Crianças a quem o menino Jesus não dava nenhuma prenda no Natal, talvez um saco de pinhões, de figos ou de nozes. Talvez. Mesmo assim brincava. Sempre esquecia o que via num mundo que não compreendia. Sentia que as coisas não deviam ser assim. Estranho o sentir de alguém pequeno que ouvia, via e não compreendia. Recordo que sofria. As conversas dos adultos eram estranhas. Comecei a desconfiar. A tristeza inundava tudo em redor. Havia obrigações difíceis de entender, não se podia questionar nada e ninguém. A tentativa era punida com castigos e ameaças, muitas do âmbito do divino. A cabeça andava sempre a prémio, sobretudo com os castigos vindos de Deus. Cedo, desconfiei da veracidade dos mesmos. Era algo incompreensível. Desconfiava do mundo em que vivia. Refugia-me apenas no único mundo sério, verdadeiro e acolhedor que conhecia e compreendia, a minha mãe. Um pequeno mundo num mundo grande e assustador. Recordo o sentimento de tranquilidade e de calor quando me refugiava no seu regaço. O meu verdadeiro mundo.
Fiquei muito admirado quando ouvi falar do dia da mãe. Pedi que me explicassem o que era isso. Se era dia da mãe é porque devia tratar-se de um dia muito especial. Disseram-me que era o dia da mãe de Jesus. Pedi mais explicações. Pedia sempre mais, mais do que as respostas que me davam e que nunca me satisfaziam.
O dia oito de dezembro era dedicado à mãe, dia da Nossa Senhora da Conceição.
 - Tens que dar uma lembrança à tua mãe. Ouvi de uma senhora com que me cruzei e que sorria com beleza. Calei-me. Era véspera do feriado, um dia cheio de sol e de uma luminosidade extrema. Lembrei-me de ir à farmácia. Na altura, já diziam que na farmácia havia de tudo. Entrei e vi o "dono", alto, careca e pouco simpático atrás do balcão. - O que é que tu queres? - Um perfume para a minha mãe. - Um perfume para a tua mãe?! Mas tu tens dinheiro? - Tenho pois. Meti a mão no bolso dos calções e tirei duas moedas de cinco tostões. O senhor Arnaldo, era assim que se chamava, debruçou-se sobre o estreito balcão e disse, com desprezo e sobranceria que lhe era peculiar: - Isso não dá para nada. Virou as costas, e eu fiquei de braço estendido com as moedas na mão. Triste e mais uma vez chocado com os humanos dos quais eu não ainda não considerava fazer parte. Mas o senhor Arnaldo, que era um unhas-de-fome, deve ter pensado que ia perder dez tostões. Voltou-se e disse: - Isso só dá para um bocado de água-de-colónia. Tens um frasco? - Não. Não tenho. Como é que podia ter, pensei. - Bom, espera um pouco. Foi lá dentro e trouxe um frasco pequeno que encheu com água-de-colónia. Enfiou-lhe uma pequena rolha e tirou-me as duas moedas sem dizer mais nada.
No dia seguinte ofereci o pequeno frasco à minha mãe. Adorou. Eu sabia que ia gostar. Eu sabia porque conhecia o único mundo que não tinha nada a ver com o grande mundo que não compreendia. Hoje continuo a não compreender. Só compreendo a falta do outro mundo.

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