"Meio-dia"...

A manhã passou depressa e o dia começou a enriquecer-se sem ter necessidade de fazer qualquer esforço. Ouço, comento, e depois deixo correr as almas dos meus interlocutores como se fossem bolas coloridas nas mãos de crianças. Mas não são crianças, longe disso, às tantas já têm dificuldade em recordar esses momentos, porque as doenças, os desencantos e as vicissitudes da vida, espelhados em olhos tristes e nos corpos doloridos, começam a fazer das suas. Sinto que têm vontade de voltarem a ser crianças. Sorrio. Empurro-as, e elas deixam, não se importam, até me agradecem. Contam tudo, falam de tudo, desnudam os seus pensamentos, dúvidas, temores e incertezas, quase que se esquecem das dores e dos tormentos do corpo. Às vezes esquecem-se mesmo. Reparo que têm necessidade de alguém que os possa ouvir, que os deixe falar, lamentar e purgar muita coisa que lhes vai na alma. Eu ouço-os. Não me canso, pelo contrário, fico com a sensação de que descanso. Os dias vão passando, e eu acabo por ir atrás das palavras e dos pensamentos de cada um. Abrem-me as portas da sua existência, e eu, curioso, entro delicadamente e ponho-me a admirar as suas vidas. Vidas simples, vidas de trabalho, vidas de sofrimento, vidas humanas desconhecidas, verdadeiras cascatas de sentimentos e, também, de algumas alegrias. Acabo por aprender muito, uma riqueza, um verdadeiro filão que me cai todos os dias na mão. Retenho frases, histórias, tossidos nervosos, velhos sorrisos e olhos a brilhar de paz. Ao meio-dia, o dia ficou mais rico, e não precisei do sol para me aquecer. Bastou-me recordar o que ouvi, o que me disseram e o que senti durante a manhã. O sol, hoje, trocou o azul do céu pela penumbra de um pequeno gabinete. O sol do meio-dia, curioso, perguntou-me, como é que anda o dia. Bem, obrigado, sabe bem viver um novo dia.

Coimbra, quinta-feira, 26.09.2013

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