"Hébil"...


O Natal aproximava-se a passos vistos. As noites na baixa eram verdadeiros convites para saborear o frio, ver as montras e sentir o calor das luzes coloridas. O roncar metálico dos elétricos a saltitarem nos carris não incomodava, pelo contrário, conseguia dar um toque de vida forte ao belo espaço que era a baixa coimbrã.
Fui de propósito à Galeria do Primeiro de Janeiro ver uma exposição de pintura. Entrei. Estava apenas um senhor de alguma idade, cabelo a cair sobre os ombros e que vestia uma gabardina que já deveria ter conhecido melhores dias. Pensei, deve ser alguma espécie de porteiro a vigiar o espaço vazio. Vi todos os quadros com detalhe até que parei em frente de um. Era o mais pequeno de todos e fugia à temática dos demais, nitidamente. Olhava, olhava mais uma vez e não conseguia sair dali. O senhor aproximou-se por detrás, sem que eu desse conta, e perguntou-me se eu gostava do quadro. -Sim. Gosto. Muito interessante. Tem qualquer coisa que me seduz. Riu-se e comentou: - Não só tem muito bom gosto, como escolheu o melhor de todos. O que é que vê nele? - O que é que eu vejo? - Sim. O que é que está a ver? Fez a pergunta com uma entoação que me irritou um pouco. Pensei: - Quem será este tipo para me interpelar desta maneira? Mesmo assim respondi-lhe: - O pintor deixou parte da sua alma neste quadro. Deixou sim senhor. Calou-se. Não fez qualquer comentário. Passados alguns segundos, que me pareceram demasiado longos, e incomodativos, perguntou: - Por que é que não o compra? Fiquei surpreendido porque não tinha ido com intenção de comprar o que quer que fosse. Jovem médico, com responsabilidades familiares acrescidas, não tinha posses para o adquirir. Perguntou-me o que fazia. Respondi que era médico. Olhou-me debaixo para cima e deve ter concluído que a minha bolsa não era por ali além. - O quadro também não está à venda. - Como?  O senhor é o pintor? -  Sou. Disse "sou" com um ar tão seco, superior e com tamanha soberba que me assustou. Olhei-o, e à medida que iniciava a retirada disse-lhe: - Desculpe, tenho que me ir embora, faz-se tarde. Boa-noite, parabéns e felicidades para o senhor. Ao chegar à porta, chamou-me: - Pst, Pst, Pst! Oh amigo. Espere aí. Estanquei e fiquei na ombreira da porta. Aproximou-se com um passo ligeiramente acelerado, com a gabardina aberta e a ondular, e disparou: - O quadro é seu! - Meu? Mas como? Não o comprei e nem sei o preço. - Não interessa, o quadro é seu, já lhe disse. A minha cabeça ardia numa tal confusão que só desejava sair dali o mais depressa possível. Era difícil dialogar com ele. - O senhor dá-me, já não recordo a quantia, e o quadro é seu. - Quanto?! Repita. E o pintor repetiu, uma, duas ou três vezes. O valor era tão baixo que até para um jovem médico, com responsabilidades acrescidas, era acessível. Respondi: - Nesse caso levo o quadro. Deve ter-se apercebido da minha admiração e, ao virar as costas num gesto de altivez, culminou: - Não gosto que me comprem a alma, por dinheiro nenhum, mas como, também, não é grande coisa, vendo-a por uma ninharia desde que me prometa que nunca o venderá. - Titubeei, aquele diálogo estava-me a incomodar, alma, dinheiro, quadro. A figura, que agora estava de costas, discursava de modo diferente ao que estava habituado. - Está bem. Fico com ele. Posso levá-lo? - Não, claro que não! Só faltou chamar-me ignorante ou estúpido. - No último dia. - E quanto ao pagamento? - No último dia. No último dia, ao final da tarde, fui buscar o meu quadro. Reparei que só tinha vendido aquele. Coloquei-o debaixo do braço, tal como estava, com a sua tosca moldura, e abalei para a Couraça de Lisboa. A partir daquele momento foi o primeiro dia de uma relação interessante, por vezes um pouco complicada, mas, mesmo assim, reconheço que era um grande pintor.
Hébil nasceu há cem anos. Sempre desejou uma homenagem da sua "cidade". O seu enorme ego assim o exigia. A sua alma não sei...

Santa Comba Dão, sábado, 21.09.2013

Comentários

  1. Este ano, ora a findar é o do centenário de nascimento do grande pintor HÉBIL.

    Quando será que a cidade de Coimbra, que ele adoptou como sua, prestará pela sua Câmara Municipal, a devida homenagem a esse excepcional pintor?!

    Há um novo presidente da Câmara. FORÇA SR. DR. MANUEL MACHADO!

    ATÉ AO FINAL DO ANO AINDA HÁ TEMPO PARA HONRAR ESSE VULTO!

    ResponderEliminar
  2. Obrigada pela sua homenagem ao meu tio-avô de quem tenho um grande orgulho.
    Foi o filho mais novo do 1º Hebil. e era um homem único pela sua forma de viver a vida.
    Tenho varios quadros dele .
    Graça Hébil

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

Fugir

Nossa Senhora da Tosse

Coletânea II