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"Trancoso"...


Tive que ir a Trancoso. O meu amigo não sabia que naquela vila histórica tinha vivido o famoso Bandarra, sapateiro e autor de profecias que fazem ainda hoje as delícias de qualquer um. Um notável que merece ser emparelhado ao lado dos melhores. Depois de termos chegado, fui à vida, cumprindo o que estava destinado. Ficou à espera, acabando por esperar mais do que o previsto. Quando entrei no automóvel vi que estava a ler. Disse-me que tinha dado uma volta. Não imaginava ver uma preciosidade que desconhecia. 
Portugal tem muitos e maravilhosos tesouros que me enchem de alegria, de satisfação e de orgulho. Tomara ter tempo para viver e andar por todas essas terras, embrenhando-me nas suas ruas e convivendo com as gentes. Foi então que apontou, com muita satisfação, o livro, "As profecias do Bandarra". Tinha acabado de o comprar. - Comprei-o por causa da nossa conversa de há pouco. - Fez muito bem. - Mas espere, também acabei por comprar este, era o último. Mostrou-me a obra de Santos Costa, "O Padre Costa de Trancoso". Dei uma tremenda gargalhada. - O padre Costa, o homem que, segundo a lenda, deve ter feito mais filhos em Portugal, filhos feitos nos ventres de dezenas de mulheres. Um feito que lhe ia custando a vida mas que, devido ao contributo para o povoamento da região, acabou por ter clemência real. - Já o tem? - Não, por acaso não tenho, embora tivesse tido conhecimento da sua publicação. - Era o último que havia na livraria, mas eu ofereço-lhe. - Muito obrigado. Aceito com imenso prazer. Depois sugeri que fôssemos tomar uma bebida naquele belíssimo e histórico lugar. Passeámos um pouco e vislumbrámos belos edifícios, e espaços cuidados, embora a decadência do Palácio Ducal cortasse o coração de qualquer pessoa. 
Não disse, mas pensei, quantas histórias devem andar por ali mortas de desejo de renascer nas almas dos visitantes. Quantas, meu Deus! Não me importava nada de as ouvir, de as ver, de as imaginar e de as guardar.
Soube-me bem a cerveja. Soube-me bem respirar aquele ar. Soube-me bem sentir o calor das muralhas.
Hoje, li, ou melhor, reli as "Profecias do Bandarra". Adorei. Tenho de regressar a Trancoso o mais breve possível, mas com tempo. 
Ontem, comecei a ler o livro "O Padre Costa de Trancoso", padre a quem foi atribuído 299 filhos paridos de 53 mulheres. Hoje retomei a leitura. Gosto da narrativa, cuidada, rica e ilustrativa dos hábitos e costumes da história de Portugal desse período.
Uma das passagens diz respeito à conversa entre o padre Francisco da Costa e o seu amigo, o culto e respeitado judeu Mendo Pires, que, conhecedor das façanhas do clérigo, ia trocando impressões sobre o tema da dissolução dos costumes. Para o padre todas as mulheres serviam para satisfazer os seus instintos, justificando-se como lhe convinha. A páginas tantas, Mendo Pires afirmou que no que toca às solteiras o "meretrício parecia ser exclusivo dos padres". Surpreendido, o Costa pediu-lhe explicações. Foi então que o escrivão comentou uma passagem do Talmude. Uma descrição tão bela que não posso deixar de transcrever. "Cuida-te quando fazes chorar uma mulher, pois Deus conta as lágrimas dela. A mulher foi feita da costela do homem, não dos pés para ser pisada, nem da cabeça para ser superior, mas sim do lado para ser igual; foi feita da parte debaixo do braço para ser protegida e do lado do coração para ser amada". O padre Costa, insensível, "encolheu os ombros", mas eu não. Uma imagem destas, cheia de amor, rica de poesia e verdadeira fonte de pureza, não pode ficar escondida. Vou retê-la. 
Afinal, como costumo dizer, adoro tropeçar em coisas belas e depois saboreá-las com prazer. Tenho que as partilhar. Porquê? Porque sim, porque merecemos desfrutar o belo, que é um dos alimentos das almas famintas.
Santa Comba Dão, sábado, 14.09.2013

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